Ouvindo um choro de bebê, mãe Preta foi até a porta e sentiu um frio na espinha ao ouvir um som fino e prolongado saindo de um cobertor que enrolava um corpo pequeno de não mais que 40 centímetros. Pegou-o no colo e, sem saber, fez a única coisa que lhe veio voluntariamente em ato protetivo.
- Chiu, Chiu, Chiu! - Fazia com a boca um som repetido enquanto embalava o bebê recém-chegado.
Olhou para todos os lados, tentou gritar - não conseguiu! Entrou e fechou a porta rapidamente – o que fazer? Chamaria a quem? A polícia? Mas, de quem era e por que colocaram ele na frente de sua casa? Ao abrir um pouco mais o cobertor até a parte do peito, havia um cartão com uma única frase: 'Meu nome é Eliabe! Nasci negro com a mente brilhante de um branco.
Ainda em choque, sem entender a frase, ignorou todo o resto que não fosse o nome do bebê e falou: - Está com fome, Eliabe? E, essa roupa, está limpinha? Vamos ver?
Perguntava como se ele entendesse suas perguntas. Retirou todo o cobertor, levou-o até seu quarto, pegou uma roupa de bebê que tinha de suas campanhas para doação. Improvisou uma fralda de pano, colocou a roupa limpa e foi até a cozinha esquentar um pouco de leite. No momento em que colocou a mamadeira próxima à boca de Eliabe, o pequeno bebê saboreou como quem saboreia a própria fome, algo inesperado tocou profundamente seu coração.
Ao olhar para aqueles olhos, decidiu não chamar ninguém. Enfrentaria tudo e a todos, mas Eliabe seria seu filho. Ela, mãe de tantos que não gerou, uma vez que mãe Preta escolheu ao longo da vida não ser mãe biológica para se dedicar aos filhos de tantas outras mães, agora criaria um filho seu.
- Eliabe, serás meu filho amado. Te ensinarei e te amarei em todos os dias da minha vida. - Articulou em voz alta olhando, agora, para aquele que seria seu filho.
De tanta bondade feita aos seus, nunca ninguém perguntou de onde veio Eliabe.
Um advogado que fora socorrido por mãe Preta em sua juventude se encarregou de oficializá-la como mãe – mãe de Eliabe de Jesus: sobrenome que recebeu de mãe Preta – Maria das Dores de Jesus. Os vizinhos a acolheram também com profundo amor e a chamavam de "a menina Jesus de mãe Preta". Cresceu em amor, em força e criatividade. Com os amigos, jogava futebol entre às três e quatro da tarde, e na escola buscava mostrar seus talentos aos professores.
Ayo o acompanhava de longe, sem ser percebido durante os anos em que crescia. Via seu talento e admitia para si mesmo: "É Miguel! Falta muito pouco para se revelar ao mundo. O que eles chamam de falta de oportunidade, Miguel mostrará capacidade intelectual."
Eliabe não havia conhecido o preconceito, mas ouvia sua mãe falar em sua casa sobre feminismo, feminismo negro, a história da terra e de sua pele, de ações afirmativas que conseguiam aos poucos furar o muro branco e europeu que colonizou a estrutura social e humana ocidental. Termos como luta decolonial, imposição cultural, amor e interseccionalidade eram envolvidos por autoras como Lélia Gonzales, Carolina Maria de Jesus, Conceição Evaristo, bell hooks e Ângela Davis diariamente em seu lar. O menino de sobrenome Jesus cresceu politizado e buscava entender, com a ajuda da mãe, os eventos que aconteciam em sua vida, como no dia em que mostrou um desenho lindo de uma ave negra que voava sobre o céu como símbolo de liberdade e foi contrariado por um professor desacreditado da educação, que lhe disse secamente: - Você é negro, Eliabe! Podes ter talento, mas não tens a cor.
Mãe Preta lhe abraçava nessas situações, explicava a importância da resistência e, por fim, sempre repetia: - Sabe por que eles falam isso? Porque você é incrível, Eliabe! Você é incrível.
Quando completou 16 anos, foi preso, acusado de roubo, e sua vida tornou-se um inferno por três longos meses de profundo sofrimento, até que conseguissem provar que não fora Eliabe quem tinha roubado uma caixa de leite de um supermercado no centro da cidade. Não perguntaram! Não se questionaram da possibilidade de não ser aquele menino negro! Apenas prenderam com uma frase única: - Cala boca, preto filho da puta! Explica para o juiz! Nós não queremos ouvir vagabundo!
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UMA CANÇÃO DE NINAR PARA DEUS
Historical FictionEliabe não havia conhecido o preconceito, mas ouvia sua mãe falar em sua casa sobre feminismo, feminismo negro, a história da terra e da sua pele, de ações afirmativas que conseguiam aos poucos furar o muro branco e europeu que colonizou a estrutura...