Prefácio

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Aquele era um péssimo dia para uma reunião emergencial que eu nem sabia do que se tratava. Bem à meia-noite daquele dia dez, mercúrio retrógrado havia entrado em ação. Minha ansiedade era tanta só de saber daquele ilustríssimo fato, e ela não me deixou por bastante tempo até eu conseguir dormir tarde da madrugada. Quando meu despertador tocou no horário, me permiti dormir um pouco a mais do tempo que deveria, e isso me resultou num atraso de pelo menos trinta minutos. Corri pelos corredores numa tentativa frustrada de me fazer chegar "cedo" e suspirei quando observei através da parede de vidro que faltava bastante gente chegar.

Ufa. Dessa vez o universo deve ter me ajudado.

— Estou no escuro aqui, sobre o que exatamente é essa reunião? — perguntei ao me sentar ao lado de Patrick, meu chefe.

— Salvação do contrato mais caro que essa empresa já viu — ele cochichou, olhando para os lados, verificando se ninguém tinha ouvido.

— É um filme? — perguntei, curiosa.

— Uma cinebiografia — ele falou mais baixo que da última vez, eu não estava entendendo o porquê de todo aquele suspense. E isso só me instigou mais a perguntar.

— Nossa, parece alguém importante, então. Você sabe quem é?

— Lewis Hamilton — Patrick falou por último.

Eu estava em estado de choque, porque não conseguia entender como uma produtora mediana havia conseguido um contrato daqueles. Desde que me enfiei naquela empresa — literalmente, pois ainda sou uma mera prestadora de serviço — não tinha esbarrado com ninguém tão famoso. E apesar de considerar Cobie Smulders muito importante na minha trajetória humana, eu sabia que seus anos de glória haviam sido quando estrelava a desapegada Robin Scherbatsky em How I Met Your Mother.

A grande mesa retangular de vidro mantinha todos reunidos, apenas aguardando a chegada do piloto. Era engraçado perceber que talvez eu estivesse menos arrumada comparado ao restante dos funcionários, porque aparentemente cada um escolheu a roupa mais elegante que tinha no guarda-roupa para esse encontro.

E eu estava literalmente menos arrumada, porque mal vestida eu nunca estava.

Algumas conversas paralelas podiam ser ouvidas, mas a maioria das pessoas estavam caladas, com feições aflitas e ansiosas, já que todos sabiam dos riscos e sentiam o peso do contrato em seus ombros. Os murmúrios cessaram pouco a pouco quando vozes do lado de fora do cubículo de vidro ficaram mais altas e, de repente, toda a sala ficou em silêncio.

— Bom dia, pessoal! Sou Lewis — o piloto nos cumprimentou, e todos responderam seu bom dia em uníssono.

Como em qualquer dia do ano, ele aparentava estar em uma passarela. Sua vestimenta era simples, porém Lewis conseguiu torná-la impecável. Vestia uma calça jeans de lavagem clara, destruída na bainha, e uma camiseta básica da cor mostarda. Ele logo se dirigiu para a cabeceira da mesa, bem em frente ao telão.

O roteirista principal da empresa logo se dirigiu para a frente do telão, ajeitando o paletó ao seu corpo, como se estivesse desconfortável com o discurso genérico que estava prestes a fazer.

— A grande ideia do projeto é fazermos um passeio pela sua carreira enquanto exibimos seus principais rivais em todas as modalidades que você correu, num formato de Drive to Survive* — Richard começou explicando enquanto trocava as imagens exibidas na tela. Nela continha Lewis em alguns pódios com outros pilotos que tiveram embates fervorosos com ele durante sua carreira. — Teremos os depoimentos da sua família, contando um pouco da sua trajetória na infância e como eles lhe apoiaram todo esse tempo — ele continuou, e dessa vez, fotos do piloto em momentos fora das pistas com seus familiares eram exibidas. — Além deles, teremos as equipes McLaren e Mercedes para contar um pouco do seu envolvimento com as escuderias.

Uma grande pausa feita por Richard deixava claro que o que ele havia imaginado para o documentário fora apenas aquilo. Todas as cabeças existentes fizeram menção para observar a reação do Lewis. Uma linha fina estava presa em seus lábios, demonstrando zero sinal de felicidade ou aprovação ao se deparar com o que tinha acabado de assistir, além de transmitir uma intensidade no olhar que gritava crítica.

— Era isso? — o piloto perguntou para Richard num tom desdenhoso.

— Be-bem, sim — o roteirista gaguejou em claro sinal de medo pelo que viria a partir dali.

— Bem, eu estava esperando algo a mais — Hamilton pausou como se estivesse procurando as palavras certas. — Eu não quero que vocês mostrem meus rivais, afinal, o documentário não é sobre eles. Além disso, a ideia de Drive to Survive não me agrada em nada, porque toda a trama é criada para forçar uma rivalidade inexistente. Você pensou em algo mais?

A sala ficou silenciosa por alguns segundos. Todos se entreolharam porque não havia um plano B, nem mesmo um plano C. Estaríamos completamente fodidos se não houvesse nenhuma outra ideia para fazer o piloto aceitar aquele documentário. O nervosismo parecia atravessar os poros de todos, mas aquilo despertou em mim uma onda de risos que eu não consegui controlar. E vinha cada vez mais alto e forte. Todas as pessoas me olharam como se eu fosse louca, e talvez eu fosse.

— Eu falei algo engraçado? — Lewis perguntou com uma fala arrastada, confuso com a razão da minha risada.

— Me desculpe, mas não. Perdão. É só que... — falei pausadamente, tentando encontrar as palavras certas, fazendo minha mente ganhar tempo para respondê-lo.

— ... Que essa ideia é patética, certo? — ele completou meu pensamento. Sua voz reverberou pelo ambiente, deixando todos tensos.

De repente, percebi a mancada que eu havia dado. Eu era a única mulher da sala. Isso significava que eu ia daqui direto para a porta da rua. Todos agora tinham seus olhares julgadores para mim, esperando uma resposta digna de alguém muito corajosa.

— É, na verdade, sim. Esse script limita toda a sua trajetória de vida em um único tópico. Entendo que mostrar as rivalidades que você teve dentro do esporte iria atrair olhares curiosos, mas você vai ser resumido a isso — comecei falando, percebi que tinha atenção dele, então continuei. Aquilo estava funcionando. — Lewis, você tem um papel social gigante, dentro e fora das pistas. Seu nome é mencionado em todos os cantos, inclusive no mundo da moda. Para mim, você é um artista nato! Esse documentário tem que ser sobre você e mais ninguém.

— Qual seu nome?

Travei com aquela simples pergunta. Qual nome meu pai havia me dado mesmo?

— Ayana — respondi séria, como se alguma parte da minha postura segura ajudasse naquele momento de conflito. Hamilton continuava com uma feição de poucos amigos, aquilo não poderia ser nada bom.

— Pessoal, Ayana ficará à frente do projeto, caso contrário, não teremos documentário. — Lewis determinou com o único sorriso que deu desde que entrou naquela sala.

*Drive to Survive é uma série documental produzida pela Netflix juntamente com a Fórmula 1, onde mostra os bastidores dos pilotos e da corrida durante o Campeonato Mundial de Fórmula 1.

REFRAMED: ON TRACK AND BEYONDOnde histórias criam vida. Descubra agora