The Muse (Parte 1)

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Dou um passo atrás, observando meu esboço novamente. Sinto que as linhas se desenharam diante dos meus olhos ao invés de eu as controlar. Era impressionante pensar que, nem mesmo no pior ponto da minha carreira eu perdia a inspiração quando o tópico era ela. Acontecia naturalmente todas as vezes: a ponta do grafite tocava o canvas e eu começava a delinear aquele rosto que, para mim, era fonte de fascínio e mistério em iguais medidas.

Eu já conhecia o cabelo escuro, a pele clara, os lábios avermelhados antes mesmo de tocar na tinta. As linhas que contornam seu nariz eram delimitadas como a segunda natureza pelas minhas mãos, sem que eu ao menos precisasse ponderar sobre. Dessa vez, seu rosto perfeito se encaixava em um cenário bucólico e seu olhar, sempre melancólico, estava perfeitamente posicionado no centro do quadro, olhando fixamente para frente. Ao redor dela, seu vestido espalhava-se pela grama.

Comecei escolhendo azul como tinta base, na intenção de permitir que a cor atravessasse as demais e aparecesse ao fundo. As árvores, de tons escuros, reforçavam o aspecto noturno da imagem. Mas não ela. Ela sentava ao centro da clareira, brilhando sob iluminação própria. A minha musa—de rosto desconhecido e feições que me eram íntimas—, mais minha do que nenhuma outra jamais fora, olhava através do desenho diretamente para a minha alma.

Era difícil recordar quando havia sido a primeira vez que minha musa tinha encontrado seu caminho até meus sonhos; e destes, para minhas obras. Ela sempre estivera lá, pairando sobre mim como um fantasma, entre a existência e o outro lado. Afinal, eu não sabia o quanto dela era real para além das minhas pinturas. Com frequência, pensava se aquela garota desconhecida não era a razão do meu fracasso—não há motivos para alguém comprar obras sobre uma mesma pessoa em diferentes cenários. Ainda assim, tinha certeza que um dia ela seria minha marca registrada, algo como o legado deixado por um tolo apaixonado por uma mulher inexistente.

Após dias de trabalho, quando finalmente pude admirar minha obra concluída, tive certeza que aquele era o quadro que mais conseguiu captar a beleza da dona das minhas obsessões. A composição quase mística da clareira de nada mais poderia ser chamada além de "The Muse".

Listei-a no meu site sem maiores pretensões e me preocupei em reparar a bagunça que havia deixado durante sua confecção.

Meu estúdio, que nada mais era do que o cômodo que deveria ser o quarto do meu minúsculo apartamento, sempre cheirava a tinta fresca, então o odor já era habitual. Apesar da presença de uma janela, a circulação do ar era impedida pelos prédios ao redor, deixando o apartamento inteiro abafado. O outro ambiente, que antes era uma cozinha e sala, estava abrigando também uma cama e a única decoração era uma réplica do nascimento de vênus acima do sofá. Tinha pelo menos três dias que eu não dormia bem, procurando empregos alternativos à minha carreira frustrada. Odiava assistir meu pai estar certo; odiaria ainda mais dar a ele o direito de falar que tinha me avisado. Fui dormir pensando nos meus problemas e Orfeu me presenteou com a presença dela em meus sonhos.

No dia seguinte, ainda que desesperançoso, verifiquei meu site e dei de cara com uma surpresa. "The Muse" fora adquirida, e ainda por cima era um endereço da mesma cidade em que eu morava. Embalei a obra imediatamente, e perguntei ao comprador sobre a possibilidade de entrega, sendo informado de que poderia ocorrer no mesmo dia.

— Você é o artista? — A empregada perguntou em tom de desinteresse.

— Sou. — Apesar de estar incerto do quão artista eu realmente era aquele ponto.

— O senhor Uchiha pediu que eu o levasse até o seu escritório.

Acompanhei a senhora sem falar nenhuma outra palavra já que era perceptível que ela apenas queria cumprir seu trabalho. A mansão luxuosa capturava o foco e o ar de meus pulmões, só que o caminho até o escritório era curto. A empregada bateu a porta, obtendo uma resposta e informando da minha presença.

Entrei. O homem à minha frente parecia ter a mesma idade do meu pai e apesar da idade e de alguns traços mais duros eu consegui vê-la imediatamente. Minha musa, a semelhança era inquestionável. Ele me mediu de cima embaixo, observou o grande embrulho que eu carregava e levantou da mesa para se aproximar.

— Qual o seu nome, novamente? — Sua voz grave reverberou pelo cômodo.

— Boruto. — Respondi o mais rápido que pude.

— Boruto eu estive olhando o seu site... Poderia abrir o embrulho por favor?

— Claro, sem problemas. — E fiz como foi pedido. Os olhos escuros dele revezavam entre me encarar e observar o quadro, de uma forma que me deixou desconfortável.

— De onde conhece essa garota? — Ele disse de forma pausada e assertiva, o que me fez ficar mais tenso do que já estava. Toda essa interação era absurdamente fora do habitual para mim. A semelhança entre a aparência do homem à minha frente com a garota dos meus sonhos, o ambiente daquela casa, a pergunta súbita que a mim foi feita. Não que eu estivesse assustado, mas tudo aquilo não poderia ser apenas coincidência.

— Desculpa, — finalmente falei — se me procurou por causa da garota acho que não posso te ajudar. Eu nunca a conheci.

Não esperava que aquele homem tão impassível fosse capaz de demonstrar fraqueza, porém percebi o momento exato em que algo dentro dele quebrou. Pude, então, assumir perigosamente que esse rosto que desenhei era conhecido dele também. Senti minhas articulações travarem e meu corpo inteiro ressoar com os disparos do meu coração. Minha musa era real? Em algum lugar desse mundo, a garota que invadia meus sonhos e meus quadros existia? Me controlei o máximo que pude, esperando que obtivesse alguma resposta que confirmasse ou negasse o que eu havia entendido. Ao invés disso, recebi silêncio.

O sr. Uchiha retornou ao seu lugar atrás da mesa e ignorou minha existência, endereçando-se a mim apenas para falar:

— Pode ir. Entregue o quadro à empregada, ela saberá o que fazer.

Me retirei do recinto e encontrei a mesma mulher que havia me recebido na porta. O quadro—que ainda estava desembrulhado e exposto—foi a primeira coisa que ela reparou.

— Meu deus. — Disparou, colocando a mão na boca imediatamente. — É a senhorita Uchiha! Você desenhou isso?

No rosto uma expressão de dor e mágoa. Senhorita Uchiha, era ela a pessoa sem nome presente no meu inconsciente?

— A senhora conhece ela? — Minhas palavras eram agitadas e quase desesperadas. Minha musa, consigo sentir sua pele na ponta dos meus dedos, tão naturalmente como consigo recriar a sensação de um pincel nas minhas mãos ou sentir o cheiro de tinta nas minhas narinas.

— Venha, venha. Não vamos atrapalhar o senhor Uchiha. — A senhora, então, começou a me guiar através de salas e corredores até chegarmos à cozinha. Quando chegamos, ela segurou o quadro entre nós dois. — Senhorita Uchiha, é ela. Sarada. Por isso que o patrão queria te ver, você sabe onde ela está!

— Acredito que há algum mal-entendido. Eu não a conheço.

— Mas... Você pintou esse quadro? Esta é a Sarada. A reconheceria mesmo que tivessem passado décadas.

— Ela é filha daquele homem? O que aconteceu? — Perguntei, ainda que a mulher parecesse se questionar o quanto deveria falar. — Eu não sei se consigo ajudar vocês mas...

— A senhorita Sarada está desaparecida há cinco anos.

The Stories of Us: Coletânea BoruSaraOnde histórias criam vida. Descubra agora