LÁGRIMAS QUE DECIDEM

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Já na casa do primo Gino, que, sentado na cadeira de rodas, ouvia a tudo atentamente, Leo mostrou o seu achado.

-Estava dentro do folheto de turismo.

-Um cartão da loteca.

-Jogava todas as semanas. Uma vez fez 12 pontos. Quase sofreu um colapso.

-Quantos pontos teria feito desta vez?

-Não contei.

Tia Zula, mãe de Gino, entrou com o café. Era uma mulher alegre mas naquele fim de tarde não estava com boa cara, os olhos muito vermelhos. O filho acariciou-lhe o braço.

- Ela gostava muito de Boa-vida. Aquele pau-de-arara sabia agradar as pessoas embora quase sempre por interesse.

- Não era tão interesseiro - retrucou Zula. - Lá na cantina, onde trabalho, tocava sanfona e cantava em troca dum simples prato de comida. Uma vez quiseram contratá-lo por três meses. Recusou. Detestava compromissos.

Ia mesmo falar da sanfona - lembrou Leo. - Foi o único objeto de propriedade de Boa-vida que desapareceu.

Provavelmente mataram-no apenas para roubá-la.

- Era uma concertina caindo aos pedaços - lembrou tia Zula. - Ninguém daria nada por ela.

-O delegado acha que o assassino pode ter sido outro sanfoneiro - disse Leo.- Um ladrão qualquer levaria também o rádio e o dinheiro.

Gino sorriu, desanimado.

-Quantos sanfoneiros existem em São Paulo? Impossível procurar entre eles o criminoso. Escrevam: a polícia vai arquivar o caso. Afinal roubaram uma concertina, não um instrumento raro, um violino Stradivarius.

A conclusão pessimista do filho fez mal à sentimental tia Zula, cujos olhos ficaram ainda mais vermelhos.

- Será que a pessoa que matou Boa-vida vai continuar livre pelas ruas?

-Às vezes - confortou-a Gino - dá uma sorte e a polícia pega o culpado por acaso.

Zula continuava sofrendo.

- Quando a vítima é importante todos se mexem. Qualquer pista ajuda. Os jornais falam, a televisão mostra.  Mas quando o coitado não tem onde cair morto só o acaso pode fazer justiça.

Gino e Leo olharam Zula e depois entreolharam-se. Ela estava revoltada e triste. E fazia enorme esforço para reter uma lágrima que teimava em rolar-lhe pelo rosto. Como não tivesse um lenço à mão, saiu às pressas da sala.

-Não sabia que tia Zula gostava tanto de Boa-vida- disse Leo.

-Eu também não- declarou Gino.

Fez-se um silêncio comprido e então Leo tornou a falar.

- E ela tem razão. Quem vai se preocupar com o assassinato de um homem que morava numa obra de construção abandonada? E parece que nem nós, que o conhecíamos,  não estamos muito preocupados.

Zula voltou à sala. Seus olhos evidenciavam que havia chorado. Mas estava mais calma.

-O melhor que temos a fazer é esquecer - disse.

Gino mexeu-se na cadeira.

- Quem sabe a gente possa estudar esse caso - declarou. - Embora nos falte um ponto de partida. O que acha, primo?

Leo sorriu, era justamente o que desejava ouvir. E Zula sorriu para os dois, acrescentando para ser agradável ao sobrinho:

- E chamem também aquela mocinha bonita, a Ângela. Ela é esperta e tem boas idéias.

-Por onde devemos começar, primo?

Gino, ainda frio, mas para não decepcionar Zula e Leo, pensou, fez a cadeira de rodas rodar em torno da mesa, criou certa expectativa e depois puxou o que poderia ser o fio da meada.

- Como era a sanfona de Boa-vida? Alguma particularidade?

- Não lembro - disse Leo.

Tia Zula queria mesmo ver o criminoso atrás das grades.

-Lá na cantina temos uma parede com fotografias dos artistas. Boa-vida também está lá com a concertina.

- Gostaria de vê-la, mãe.

-Vou buscár-la loguinho. Era tão velha que não se parece muito com as demais.

Tomada essa providência, Gino lembrou-se de fazer uma pergunta que desde o início trazia na garganta.

- Que arma foi usada?

Leo ergueu e abandonou os braços.

-Que cabeça,  a minha! Estive lá,  vi o sangue, falei um tempão com o doutor Arruda e me esqueci disso.

-Não encuque, primo. Deve ter sido uma vulgar peixeira. E, como a velha Zula ordenou, convoque a gatíssima Ângela.

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⏰ Última atualização: Jul 11, 2015 ⏰

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