UM RELATO COM MUITA PALIDEZ, GAGUEIRA E COPOS DE ÁGUA

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     Foi mais ou menos assim que o pequeno Muriçoca, pálido,  trêmulo,  gaguejando,  contou ao delegado distrital, doutor Arruda,  depois de tomar um copo de água numa única e febril virada:

      - Parei na entrada da construção por causa da chuva. Fiquei lá um tempo e então subi as escadas.

     - Por que subiu?

     - À procura de emprego, doutor. Estou sempre tentando.

     - Você mora numa casa de cômodos perto da obra.  Não sabia que está paralisada há muito tempo?

     A pergunta agiu como uma prensa: hesitante,  Muriçoca pareceu ainda menor e mais desamparado na delegacia. Olhou para o copo vazio sobre a mesa, suplicando mais água. Aquilo era medo.

    - Sabia ou não sabia?  - exigiu Lima, o investigador que acompanhava o depoimento.

    - Sabia - confirmou o rapaz, juntando os punhos, culposamente à espera das algemas.

    - Para que então pretendia pedir emprego numa obra abandonada? - perguntou o delegado.

    - Ouvi um rádio lá em cima.

    Fácil lembrar.  A cena ficara impressa na memória de Muriçoca como um teipe de televisão que se pode rever muitas vezes, mas não conseguia com desembaraço, transformá-la em palavras.  Era um frevo saltitante, gostoso. Lembrava-o Pernambuco, sua terra. Quem sabe um coestaduano, vigia do prédio, desse-lhe uma colher de chá. Como dissera ao delegado, estava sempre tentando. Aspirando forte cheiro de cal, galgou os degraus, não revestidos, de uma escada. Chegou ao primeiro andar. Não viu ninguém. Orientado pela música - agora era um xaxado - dirigiu-se a um apartamento, ainda sem porta. Viu-se numa sala onde se acumulavam sacos de cimento e outros materiais de construção. Parou e bateu palmas. Nenhuma resposta.

   - Quero falar com o vigia - disse em voz alta.

   - Se ele saiu para tomar café, porque deixou o rádio ligado?, perguntou-se o rapaz. Atravessou uma sala e penetrou num cômodo escurecido por um cobertor fixado à janela para bloquear a entrada de luz. O rádio, de pilha, estava sobre alguns tijolos. Na penumbra viu uma espiriteira, um colchão velho, alguns folhetos coloridos e . . .

    - Um homem,  caído de costas, com a camisa toda ensanguentada. E havia também grandes manchas de sangue pelo chão.

    O delegado observa-o com a experiência profissional de quem não acredita em tudo que ouve. Muitos criminosos são os primeiros a "achar" suas vítimas.

    - Quando foi isso?

    - Hoje cedo, as oito horas, mais ou menos.

    - Por que demorou tanto para vir?

    Muriçoca contraiu-se todo como se fosse aquela a pergunta mais temida. O investigador olhou maliciosamente para o delegado, prevendo, com a pergunta, a possibilidade de uma confissão. As vezes o sentimento de culpa já nasce com o endereço da delegacia.

    - Andei marombamdo por aí, parando nas esquinas, tomando café nos botecos, me molhando na chuva.

    - Você não respondeu, moço - disse o doutor Arruda, enérgico.

    Muriçoca baixou a cabeça, o queixo no peito, os punhos de novo pronto para as algemas.

    - Medo de me encalacrar, doutor. O pobre sempre é suspeito de alguma coisa, ainda mais quando tem um cadáver por perto.    

Um cadáver ouve rádioOnde histórias criam vida. Descubra agora