Cresceu uma grande amizade entre nós, Jonathan e eu, durante a infância.
Nós nos encontrávamos depois das cerimônias aos domingos e em eventos sociais, como casamentos ou até funerais, ou quebrávamos totalmente as regras e caminhávamos para dentro da floresta para podermos concentrar nossa atenção um no outro. Cabeças balançavam em sinal de desaprovação e, sem dúvida, muitas línguas se rendiam às fofocas, mas nossas famílias nada fizeram para impedir nossa amizade ou, pelo menos, não fui informada disso.
Foi nessa época que percebi o quanto Jonathan era mais solitário do que eu imaginava. Os outros meninos procuravam a companhia dele muito menos do que eu pensava e, da parte de Jonathan, quando um grupo chegava perto de nós nos eventos sociais, ele os debandava. Lembro-me de em uma ocasião, numa reunião da igreja durante a primavera, que Jonathan se desviou quando viu um grupo de garotos vindo em nossa direção. Não tinha ideia do que aquilo significava e, após alguns minutos de ansiosa contemplação, resolvi perguntar.- Por que preferiu caminhar por aqui? - Perguntei. - É porque tem vergonha de ser visto comigo? - Ele emitiu um som, zombando de mim.
- Não seja estúpida, Lanny! Posso ser visto com você agora. Qualquer um pode nos ver caminhando juntos. - Isso era verdade, e um alívio. Mas não podia deixar de saber a razão.
- Então, é porque você não gosta deles?
- Não é que eu não goste deles. - Ele respondeu irritado.
- Então por que... - Ele me cortou.
- Por que está me questionando, Lanny? Acredite no que estou dizendo. É diferente para os meninos, Lanny, isso é tudo.Ele começou a andar mais rápido e eu tive que erguer um pouco as saias para alcançar o passo dele. Ele não havia me explicado a que o maldito “diferente” se referia: o que era diferente para os garotos? Tentei imaginar. Quase tudo, até onde conseguia enxergar. Os meninos podiam ir para a escola, se a família tivesse condições de pagar as taxas de seus tutores, enquanto a escolaridade das meninas não passava daquilo que as mães conseguiam lhes ensinar: as artes domésticas da costura, limpeza e cozinha, talvez um pouco da leitura da Bíblia. Os meninos podiam lutar entre eles só para se divertir, correr e brincar de pega-pega sem o desconforto das saias compridas, andar a cavalo. É verdade que eles tinham tarefas mais difíceis e que precisavam aprender todo tipo de coisa; uma vez, Jonathan me contou, seu pai o fez consertar a base do depósito de gelo, pedra e argamassa, só para que soubesse um pouco sobre marcenaria, mas, a meu ver, a vida de um garoto era muito mais livre. E aqui estava Jonathan reclamando disso.
- Queria ser um menino - Murmurei, quase sem fôlego, tentando manter o ritmo dele.
- Não queria nada - Respondeu ele sobre os ombros.
- Não vejo o que... - Ele se virou para mim.
- E seu irmão, Nevin? Ele não gosta muito de mim, gosta? - Eu parei atônita. Não, até onde eu me lembrava, Nevin não gostava, nem nunca gostou do Jonathan. Lembro-me da briga com Jonathan, de como Nevin voltou para casa manchado com sangue seco em seu rosto, e do orgulho silencioso que meu pai sentiu. - Você sabe por que o seu irmão me odeia? - Ele quis saber.
- Não sei. - Digo, quase que em silêncio.
- Nunca dei motivos a ele, mas ele me odeia mesmo assim. - Jonathan disse, esforçando-se para não trair a mágoa na voz. - É assim com todos os meninos, eles me odeiam. Alguns adultos também. Sei disso, posso sentir. É por isso que tento evita-los Lanny. - Seu peito estava ofegante, cansado de explicar tudo pra mim - Pronto, agora você sabe. - Ele disse e se apressou, fiquei olhando para ele surpresa.Pensei a semana toda sobre o que ele dissera. Poderia ter conversado com Nevin sobre seu ódio por Jonathan, mas fazer isso seria retomar uma antiga briga entre nós. Ele não suportava que eu fosse amiga de Jonathan, obviamente, e eu já conhecia muito bem as razões. Meu irmão achava que Jonathan era presunçoso e arrogante, que se gabava de sua riqueza e que esperava, e recebia, tratamento especial. Eu conhecia Jonathan mais do que qualquer outra pessoa fora de seu círculo familiar, talvez até mais do que a própria família, de forma que sabia que tudo isso era mentira, exceto pelo último motivo, mas não era culpa de Jonathan se as outras pessoas o tratavam de maneira diferente. E, ainda que Nevin nunca admitisse, eu via em seus olhos de ódio o desejo de estragar a beleza de Jonathan, de deixar sua marca naquele rosto maravilhoso e derrotar o filho favorito da cidade. A seu modo, Nevin queria desafiar Deus, para corrigir uma injustiça que Ele deliberadamente tinha lhe feito: ser obrigado a viver sob a sombra de Jonathan, em todos os sentidos. Foi por isso que Jonathan se afastou apressadamente de mim na reunião da igreja, pois tinha sido forçado a compartilhar sua vergonha comigo e talvez pensara que, uma vez que eu soubesse seu segredo, eu o abandonaria. Quanto nos apegamos a nossos medos durante a infância! Como se existisse qualquer tipo de força na terra ou no céu que pudesse me impedir de amar Jonathan! De fato, isso me fez enxergar que ele também tinha seus inimigos e caluniadores; que ele também era julgado constantemente e que precisava de mim. Eu era a única amiga com quem ele era livre. E a recíproca era verdadeira: honestamente, Jonathan era a única pessoa que me tratava como se eu fosse importante. E ter a atenção do garoto mais desejado e mais importante do vilarejo não era pouca coisa para uma garota quase invisível entre seus pares. O que eu poderia fazer a não ser amá-lo, ainda que fosse só por isso? E foi exatamente o que disse a Jonathan no domingo seguinte, quando fui até ele e coloquei meu braço embaixo do dele enquanto caminhava no final do gramado.
- Meu irmão é um idiota - Foi tudo o que eu disse e caminhamos juntos sem trocar nenhuma palavra.
Uma coisa da qual eu não me arrependi de dizer durante nossa conversa na reunião da igreja foi que eu gostaria de ter nascido um menino. Ainda acreditava nisso. Foi enfiado na minha cabeça, pelas coisas que meus pais faziam e pelas próprias regras sob as quais vivíamos, que meninas não valiam tanto quanto meninos e que nossa vida estava fadada a ser bem menos importante. Por exemplo, Nevin herdaria a fazenda de meu pai, mas se ele não tivesse o temperamento ou a vocação para a criação de gado, ele poderia ser aprendiz de ferreiro ou ser mandado para trabalhar como lenhador para os St. Andrew; ele tinha opções, apesar de limitadas. Como mulher, eu tinha poucas escolhas: casar e formar a própria família; ficar em casa e cuidar de meus pais; trabalhar como serviçal na casa de alguém. Se, por algum motivo, Nevin recusasse a fazenda, meus pais, possivelmente, a dariam para o marido de uma das filhas, mas isso também dependeria da preferência dele. Um bom esposo levaria em consideração o desejo de sua esposa, mas nem todos o faziam. A outra razão, a mais importante, em minha opinião, era que, se eu fosse um menino, seria muito mais fácil ser amigo de Jonathan. As coisas que poderíamos fazer juntos se eu não fosse uma garota! Poderíamos andar a cavalo e sair em busca de aventuras sem um acompanhante. Poderíamos passar muito tempo na companhia um do outro sem desagradar ninguém ou ser motivo de falatório. Nossa amizade seria tão comum que não seria alvo de investigação. Em retrospecto, entendo agora que era uma época difícil para mim, ainda presa na adolescência, mas já tateando a maturidade. Havia coisas que queria de Jonathan, mas ainda não conseguia dar nomes a elas e tinha apenas o desajeitado modelo da infância como comparação. Eu era próxima a ele, mas queria ser ainda mais próxima, de uma maneira que não entendia. Via como ele olhava as meninas mais velhas e que ele se comportava de um modo diferente com elas, e pensei que fosse morrer de ciúme. Em parte, isso acontecia por causa da intensidade da atenção de Jonathan, seu grande charme. Quando ele estava com você, tinha um jeito de fazer você se sentir o centro do Universo. Seus olhos, aqueles olhos escuros sem-fim, olhavam para seu rosto e era como se ele estivesse lá para você e somente para você. Talvez isso fosse uma ilusão, talvez fosse somente a alegria de tê-lo junto de si. De qualquer maneira, o resultado era sempre o mesmo: quando Jonathan não dava mais atenção, era como se o Sol se escondesse atrás de uma nuvem e um vento frio e cortante batesse nas costas. Tudo o que queria era que Jonathan voltasse, para ter sua atenção de novo. E ele mudava a cada ano. Quando estava desatento, via aspectos dele que nunca tinha visto (ou percebido) antes. Ele podia ser cruel, particularmente quando notava que era observado por uma mulher. Exibia o comportamento grosseiro dos lenhadores que trabalhavam para seu pai, falava de maneira vulgar sobre as mulheres como se já estivesse familiarizado com todos os níveis possíveis de intimidade entre os sexos. Mais tarde soube que, aos 16 anos, ele fora seduzido e seguiu seduzindo outras mulheres; tornou-se um participante (comparativamente cedo na vida dele) dessa valsa secreta de amantes ilícitos existente em St. Andrew, um mundo escondido quando não se sabe onde procurar. Mas estes eram segredos que ele não tinha coragem de dividir comigo. Tudo o que sei é que meu desejo por Jonathan crescia e, às vezes, tinha a sensação de que estava quase além de meu controle. Havia algo em seus olhos negros, ou em seu meio sorriso, ou no modo como acariciava propositadamente a manga de seda de uma jovem quando pensava que ninguém o estava observando, que me fazia querer que ele me olhasse e me acariciasse da mesma forma. Ou, quando pensava nas coisas indecorosas que o tinha ouvido dizer, queria que fosse indecoroso comigo também. Compreendo agora que eu era uma jovenzinha solitária e confusa que implorava por intimidade e paixão física (apesar de isso ser um mistério para mim); sei disso agora, mas minha ignorância foi o caminho para minha desgraça. Estava louca para ser amada. Não posso colocar a culpa toda em Jonathan. Quantas vezes causamos nossa própria derrocada!
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Ladrão de Almas (Livro)
Mystery / ThrillerNo turno da noite de um hospital no estado do Maine, o dr. Luke Findley espera ter uma noite tranquila com lesões causadas pelo frio extremo e ocasionais brigas domésticas. Mas no momento em que Lanore Mcllvrae - Danny - Entra no pronto-socorro, mud...