Capítulo 3 - Dez anos

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Dez anos se passaram desde o bombardeio. Rudy Steiner já estava na faculdade, tirava o curso de biologia. Apesar de ter crescido fisicamente, ainda era uma criança. E era fácil de perceber isso quando estava perto da sua irmã adotiva, Luise Reichel, que era apenas dois anos mais nova que ele.

Certa noite teve um sonho estranho, fazia anos que não tinha pesadelos, que não sonhava com ela. O sonho começava como a maioria dos seus pesadelos: na Rua Himmel.

Rudy caminhava pela Rua, ela estava normal, desde as ruas manchadas até as casas organizadas, as crianças jogavam futebol, poucos adultos estavam fora de casa, mas ele pode notar que alguns observavam o jogo como se fosse um jogo oficial.

Depois disso vieram sirenes e gritos desesperados, as bombas vieram quase no mesmo segundo. Era tarde demais. O fumo diminuiu e a Rua Himmel estava destruída. Rudy sabia que todos aqueles que antes riam, estavam agora por baixo dos escombros. Só não percebeu porque é que ele estava em pé em cima do entulho. E então, ele viu.

Ela parecia pequena e inocente, como ele se lembrava.

Ela estava num canto um pouco afastado da bagunça, Rudy correu até ela e ajoelhou-se a seu lado. Parecia estar a dormir. Os olhos estavam fechados delicadamente e ela tinha o esboço de um sorriso nos lábios, como se estivesse no melhor momento de um sonho quando fora atingida. Quando reparou bem percebeu que ela segurava algo com força contra o peito, não se surpreendeu ao ver que era um livro. Ficou em dúvida se podia ou não tirá-lo de seus braços.

Rudy acabou por tirar o livro de capa preta dos braços dela. Lágrimas saíram dos seus olhos quando percebeu que ela não reclamaria por ter feito isso, nunca mais. Ele olhou na primeira página do livro.

*A MENINA QUE ROUBAVA LIVROS*

uma pequena históriade Liesel Meminger

Quase como impulso Rudy soltou o livro, que caiu ao lado da dona, e, quase ao mesmo tempo, um Rudy Steiner real acordou confuso e assustado, tentando entender alguma coisa do sonho.

***

Liesel Meminger acordava de mais um pesadelo que envolvia, entre outras coisas:

* Uma ladra de livros

* Um casal que a acolhera como filha

* Um judeu

* Um menino que morreu num comboio

* Um menino com cabelos de limão

* E uma porção de bombas

Max Vandeburg foi quem percebeu desta vez. Quando ela tentou abafar o grito correu até o quarto para ouvir como tinha sido o desta noite. Já virara rotina de Liesel narrar os seus pesadelos.

*UMA SURPRESA A RESPEITO DOS HERMANN*

Eles não se importaram quando um judeu procurou por Liesel à porta da casa, pelo contrário, ofereceram abrigo ao homem assim que perceberam a sua amizade com a rapariga. Liesel precisou insistir muito para que Max aceitasse.

Max disse alguns "está tudo bem agora", "eles não gostariam de te ver a chorar" (essa era uma das suas frases preferidas para quando Liesel parecia à beira das lágrimas) e soltou até um "acho que não tenho feito um bom trabalho nestes últimos anos para que os pesadelos terminem". Liesel deu um soco ao de leve no ombro do rapaz depois desta última. Pouco tempo depois desceram para o pequeno almoço.

Somente Ilsa estava à espera. Exceto uma chávena de café na ponta da mesa, era muito difícil encontrar o antigo prefeito em casa.

- Bom dia crianças - cumprimentou Ilsa.

- Já não sou uma criança, Ilsa! - Liesel fingiu indignação - e Max já está velho.

*UM COMENTÁRIO SOBRE LIESEL MEMINGER*

Ela nunca chamara Ilsa de mãe, nem Albert de pai.Eles sabiam e entendiam perfeitamente que Hans e Rosa eram únicos.

- Obrigado pelo elogio, Liesel! - Max fez cara de chateado. - Não vou querer que me ajudes hoje na biblioteca.

- Mesmo que não a quisesse lá, Max, ela iria à mesma. - riu Ilsa - Esta rapariga passa mais tempo lá do que em casa.

- Não tenho culpa de que os livros de lá sejam mais interessantes. - Liesel fingiu superioridade enquanto passava manteiga na torrada.

- Liesel! - ela parecia ofendida. Parecia apenas - Tenho a leve impressão de que não achava os meus livros chatos quando aparecias cá todos os dias para os ler.

A conversa ficou assim por uns trinta minutos, até Max precisar de ir trabalhar na biblioteca e Liesel limpar rápido o nariz sujo de manteiga antes de acompanha-lo.

***

Rudy nem se preocupou em pentear o cabelo, ainda pensava no sonho, embora não fosse a única preocupação na sua cabeça. Comeu o pequeno almoço em silêncio e depois saiu para caminhar um pouco.

Ao longo dos anos, o rapaz aprendera a falar inglês, e muito bem afinal. Descobrira que aquela palavra que parecia alienígena para ele dez anos atrás, era um simples "obrigado". O jovem gostava muito de conversar com desconhecidos que via na rua, davam-lhe uma sensação de conforto. Depois imaginava uma vida inteira que a pessoa poderia ter vivido, tendo como referência um diálogo de cinco minutos. Ele nunca soube se a sua imaginação era pelo menos parecida com a realidade.

Rudy costumava passar a tarde toda fora, geralmente conversando com a irmã. Mas neste dia voltara mais cedo. E uma ideia absurda passou pela sua cabeça.

- Mãe? - ele chamou timidamente da porta do escritório da mãe - Posso entrar? - a mulher fez que sim com a cabeça, Rudy aproximou -se e sentou-se à frente da mãe. Um flash de memória fê-lo lembrar-se da primeira vez que a vira. - Mãe, eu estive a pensar... Eu queria voltar para a Alemanha.

- Desculpa? - Andrea engasgou-se com a própria saliva.

- Bem, já faz dez anos desde... Tu sabes... Eu, eu sinto-me mal por nunca os ter ido visitar. Eu estava pensar em ir depois que da formatura, mas, esta noite...

Rudy explicou resumidamente o seu sonho. Nunca tinha dito o nome de Liesel, era sempre "a minha vizinha" ou "a minha melhor amiga". Andrea repetiu o nome dela algumas vezes antes de falar para ele continuar.

- Então eu pensei que, bem, não costumo acreditar muito nessas coisas, mas eu pensei que fosse um tipo de aviso, entendes? Como se quisessem que eu fosse até lá.

- Rudy, querido - ela refletiu por alguns segundos - se me tivesses pedisse isso quatro anos atrás podes ter certeza que eu te diria um não - Rudy moveu-se desconfortavelmente na cadeira - mas, como os tempos são outros, acho que podemos passar um ou dois meses lá.

How about a kiss Saumensch?Onde histórias criam vida. Descubra agora