01 - Questões grandes e pequenas

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Só nos conhecemos quando estamos no limite.

Nada podia ser pior do que montar um planejamento extenso. Para um ano já era algo complicado, quem diria os próximos cinco anos. Como se cinco anos fosse um prazo viável para se programar. Talvez para algumas pessoas isso pudesse ser fácil, mas Lilian tinha vinte e um anos, se esta fosse sua única tarefa estaria feliz.

Morava com a mãe Suzan e o irmão caçula Marcos de dezenove. O pai os havia abandonado. Parte importante da infância de Lilian e Marcos fora na casa da avó, a simpática senhora Judith. A velha senhora de sorriso incomparável e abraços aconchegantes, era a mais perfeita companhia para se dividir uma xícara de chá e conversar. Adorava contar histórias, sempre tentando ensinar de alguma forma, fazendo todos refletirem. A avó gostava de compartilhar sua sabedoria, mas com o passar do tempo, as histórias acabavam por se repetirem. Ocasionalmente, os netos interrompiam a pobre senhora, antecipando os detalhes da história, avançando para o final da história, tentando evitando ouvi-la pela centésima vez. Isso é claro, nas poucas vezes em que estavam dispostos a enfrentar o olhar de tristeza daquela pobre senhora, ou algum castigo.

Ouvir sobre coisas antigas por vezes era enriquecedor, saber o quanto a vida cotidiana mudou, ouvir repetidas vezes a mesma história também trazia um certa abertura para mudar a perspectiva. Antigamente por exemplo era criança e não tinha paciência, queria ouvir sobre coisas interessantes, hoje a maioria das histórias não era novidade, mas se atentava mais aos detalhes e as motivações de cada um quando ouvia as histórias. Lembrava de histórias como as do falecido tio Gilberto, que aos seus olhos quando criança, pareceu sempre ser engraçado e divertido quando estavam em família, mas sério e briguento com os demais adultos. Hoje sua perspectiva era outra, sabia que ele estava sempre feliz e animado com as crianças quando bêbado, mas quando passava do ponto eram os adultos que o seguravam e geralmente se ele estava sóbrio, ficava fechado e se afastando dos demais familiares. O mesmo faleceu em um dia depois de tanto beber e passar mal quando estava sem ninguém perto para o socorrer.

Sua mãe sentiu a perda do único irmão e caçula, por isso não falavam muito sobre a causa. Lilian sabia que a mãe sentia algo triste em relação a perda, como se pudesse ter feito mais pelo irmão, Lilian vez ou outra a consolava, dizendo que foi consequência das escolhas dele, agora que era mais madura, mas a mãe de certa forma o havia afastado aos poucos para não influenciar negativamente as crianças.

Susan tinha uma vida complicada. Mãe solo. O pai os havia abandonado praticamente após o nascimento do irmão, sem motivos. Depois disso, a mãe se tornou uma pessoa extremamente sobrecarregada, sempre trabalhando, para manter os dois filhos saudáveis e lhes oferecer uma boa educação. A ausência do marido exigia que a carga de trabalho fosse maior e a tornava uma mãe parcialmente ausente como consequência. Não bastasse isso, a renda que poderia sobrar de Suzan, custeava Marcos e seus feitos rebeldes. Esses custos variavam desde roupas danificadas até consequências mais sérias, como algo que ele tivesse quebrado. Ele vivia se metendo em alguma encrenca com Gustavo e Pablo, seus melhores amigos, ou sua "equipe do terror", como Lilian gostava de pensar. O irmão era mestre em arrumar confusão e se meter onde não devia. A mãe não tinha muita escolha a não ser reparar esse dano e consequentemente, não sobrar mais nada.

Apesar do lado rebelde do irmão, ela via abaixo dessa pose de valentia, um garoto triste e solitário que tentava chamar a atenção da mãe. Ele usava a rebeldia para extravasar. Ela o ajudava a encobrir algumas coisas, por isso e pelo convívio de longa data entre os dois mantinham um vínculo muito forte. Mas ela nem sempre podia defender o rapaz, principalmente quando ele se envolvia em brigas, machucava alguém e até mesmo em algumas situações Lilian era obrigada a bancar a mãe e dar broncas no caçula.

Sua família não era conhecida por realizar grandes comemorações e festas. Não que Lilian achasse isso importante, mas muitas vezes discutia com a mãe, pois não a via priorizar a família. Suzan não conseguia acompanhar a rotina dos filhos na escola e a avó não dava conta de todos os afazeres domésticos. O tempo era a maior pauta de discussão, pois era aquilo que sua mãe nunca tinha. Tempo para chamar a atenção dos filhos em seus deveres escolares. Tempo para ajudar Judith em casa. Tempo para remendar um rasgo no uniforme do irmão. Tempo para ir ao mercado. E por fim quando sobrava algum tempo, usava-o para descansar. Só não havia tempo para estar com ela e o irmão. E Lilian a culpava pela rebeldia do irmão, motivada principalmente por essa falta de tempo.  O tempo onde mãe faltava e Lilian se via na necessidade de cobrir, fosse para cuidar do irmão ou ajudar a avó.

O legado de RhognarOnde histórias criam vida. Descubra agora