A vela que nunca apagou

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       A Vela Que Nunca Apagou

Com seus netos em frente à lareira, a vovozinha fechou o livro onde acabara de ler uma linda história.
— E o que aconteceu com o reino fantasma? — indagou uma das crianças que não piscava os olhos das narrativas da vovó.
— Isso já é outra historinha. Temos que voltar muito longe, onde vocês nem eram sementes e eu, nem era gente.

— Conta logo, velha! — disse o mais mal-educado dos netos, também o mais velho.

A vovozinha moveu seus lábios secos para narrar o nosso conto.    

Existia um reino, não sei onde exatamente, no nosso país, que reinava um rei muito insatisfeito com a vida no trono.
Vivia sempre com medo do que iria acontecer. Isso tudo devido a uma vela que perdeu. Não era qualquer vela, era uma vela especial, que nenhum súdito ou nobre sabia quem lhe dera de presente, nem sequer sua rainha.
Todos os dias uma dúzia de soldados reviravam todo o reino à procura do objeto, que era mais caçado que as próprias bruxas daquela época. O rei gastava tantas verbas à caça da vela que a população começou ficar mais pobre. Tão pobre, que uma família de três pessoas acabou tendo que morar em um subterrâneo debaixo do castelo do rei.
A família estava pele e osso por se alimentarem somente de ratos e lagartos. Não só sem comida, eles ficaram também sem luz e sem água. Não durou muito para a única filhinha pequena do casal falecer de fome em um inverno rigoroso. De tanto a mãe chorar, morreu desidratada e com fome. O pai estava em prantos. Chorava muito alto todas as noites no escuro, mas ninguém o ouvia, porque estava muito abaixo da sociedade, literalmente. O pai então entendeu que, se ficasse parado ali a escuridão iria matá-lo.

Assim, o homem saiu do buraco onde se mantinha e resolveu pedir comida na rua. O que foi um erro. Todo mundo estava em crise e não puderam ajudá-lo. Ele olhava para o céu com lágrimas que teimava em sair de seus olhos. Estava também morrendo de saudade de sua família. 

Assim, teve a ideia de subir a grande escada da igreja de joelhos até o altar, com intuito de pedir a Deus um lugar para ele e sua família no céu. Eram mais de trezentos degraus até chegar em um altar. Com os joelhos sangrando, ele conseguiu chegar lá no alto e beijou o chão frio e pediu perdão por todos os seus pecados. Antes disso, pediu que Deus o deixasse cometer só um último pecado: pegar uma das cem velas acessas do local iluminando a face de Jesus Cristo pregado na cruz.
Ele pegou a vela mais escura de todas, que estava apagada, e colocou no bolso para iluminar o local que chamava de lar. Um lar azedo de se viver, não um doce lar. Ele aproveitou e pegou muitos fósforos para acender, uns dez palitos.
De volta ao buraco em que residia, ele riscou um fósforo entre as rochas, tremendo de medo do escuro. Colocou a chama, azul e minúscula, na ponta da vela, que irradiou o ambiente de luz, tanta luz que parecia que era dia.
O brilho imenso gerou duas figuras familiares para aquele pobre homem. Não pôde acreditar! Era sua esposa e filha na sua frente. Sua família que até então estavam mortas.

— Pai! — disse sua filhinha, agora aparentado saudável e bem nutrida, com um brilho no rosto, angelical e sorridente. Sua mãe, de branco, estava semelhante a ela.

— Querido, venha conosco logo. Não imagina o quão bom é aqui do outro lado — convidou sua esposa com um sorriso largo, com todos os dentes na boca que antes não havia.

O pai não segurou as lágrimas. Isso parecia fantasia, com certeza estava delirando. Mas escolheu acreditar. Para sua infelicidade, tinha que apagar a vela, antes que se consuma toda.
— Adeus, meus amores, eu não vejo a hora de ver vocês novamente amanhã, quando escurecer. Agora tenho que dormir e enganar a fome — ele se despediu.

Na noite seguinte o homem acendeu de novo a vela, de tom escuro, à espera de novamente ver sua família e, para sua surpresa, lá estavam as duas novamente, bem na frente dele. Ele ficou tão alegre que saiu do buraco com elas.

Na rua, com a vela na mão, acabou vendo pessoas que nunca vira antes: pessoas acenando para ele com sua esposa e filha junto dele; assim como via fantasmas sem cabeças e braços, com flechas atravessadas em seus corpos com finas luzes azuis. Misturado à multidão feliz estava outro grupo de pessoas, amarguradas, com o ódio pregado em suas faces. Ainda viu a dúzia de soldados do rei vindo na direção dele à cavalo, o que fez com que ele pensasse que estavam atrás dele devido ao roubo da vela na igreja anteriormente. No desespero por fugir, por um descuido, acabou perdendo sua esposa e filha dentro da multidão.  Ele ficou desesperado e saiu em busca delas em todos os lugares. Confuso e perdido, o desafortunado homem se escondeu em um estábulo abandonado, com o chão coberto de palhas secas para os cavalos se alimentarem. No desespero, ele se descuidou e a vela caiu entre as palhas secas e se iniciou um incêndio. Mas não um incêndio comum, porque aquela não era uma vela comum. Em segundos, o fogo atingiu todo o reino.
No castelo, o rei ficou preso no lugar mais alto do edifício, subindo desesperado para fugir do fogo.  Mas não demorou muito para que ele ficasse circundado pela fumaça escura e sufocante.

Foi então que, entre as chamas e a fumaça, ele notou uma figura que ele podia reconhecer muito bem: era seu irmão mais velho, o legítimo herdeiro do trono, que ele matara envenenado para usurpar o poder, e ele agora estava vestido com toda sua glória.

O irmão assassinado se dirigiu a ele e falou: você teve a glória que essa terra pôde dar, mas nunca terá a glória dos reinos dos céus, assassino!

A face do rei, preste a morrer asfixiado ou queimado, se encheu de terror; as chamas ardentes eram o menor dos detalhes comparado ao inferno que iria visitar depois da morte.

Assim, todo o reino foi consumido pelo fogo. As pessoas saíram de madrugada de dentro de suas casas ao perceberem o fogo, afirmando ter visto fantasmas e anjos. Porém, quase ninguém sobreviveu para contar a história direito.

— E como a senhora está contado agora, vó? — interrogou o neto mais novo. 

— As bruxas estavam sendo menos caçadas na época, devido à vela mágica que elas próprias fizeram, e eram imunes ao fogo vindo de sua própria magia. Então, como um pássaro liberto de sua gaiola, elas ganharam o céu coberto de fumaça naquela noite. entenderam rápido o que estava acontecendo e voaram com suas vassouras para o alto, rapidamente. Puderam ver de longe o reino sendo consumido pelo fogo.

Um dos netinhos arregalou os olhos, confuso.
— Vovó, a senhora é uma bruxa? — perguntou assustado.

  A senhorinha, sorridente, não respondeu de imediato. Apenas apagou a lareira e colocou os pequenos para dormir. Chegou pertinho do ouvido do netinho que tinha perguntado e sussurrou: talvez, querido.

Fechou a porta e saiu.

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