𝟬𝟮.

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𝟬𝟮 - 𝗣𝗔𝗦𝗦𝗔𝗗𝗢.
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14 anos antes:
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‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ O tempo atrás das janelas não era bonito. O céu cinza e e as gotas de chuva traziam um ar ainda mais fúnebre para o dia que já era triste. Mesmo sendo logo após o almoço, o céu nublado fazia parecer fim de tarde. E para completar, eu não conseguia achar o meu pai.
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‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ Eu fui realista desde o começo. Sabia que a minha mãe não estaria comigo na minha formatura, nem pelo resto da minha vida, mas também não imaginei que ela iria embora tão cedo. Mesmo agora, depois dela falecer, sinto que não consigo perdoá-la por ter escondido o diagnóstico de mim.
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‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ Ela descobriu a leucemia em um estágio onde o tratamento seria muito difícil, e optou por não realizá-lo. Também optou por não me contar, fazendo assim com que eu descobrisse apenas quando a doença já tinha tomado totalmente conta dela. Além de não perdoá-la por não me contar, também não a perdoo por fazer com que minha última memória dela, fosse ela totalmente acamada e debilitada, e não a mulher ativa e feliz que um dia foi.
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‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ O que mais me machuca foi saber que ela simplesmente desistiu. Entendo que o tratamento poderia não funcionar, mas nem o amor dela pela filha fez com que ela sequer tentasse? De certa forma me sinto abandonada, impossível ela achar que meu pai vá fazer o mínimo esforço para cuidar de mim agora que ela se foi, começando pelo simples fato de que ele sequer apareceu para me levar para o funeral. Um funeral que ele também não se deu o trabalho de organizar, já que se não fosse pelos Mori, eu não sei o que seria do corpo da minha mãe.
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‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ E eu não sei o que seria de mim sem a ajuda de Katsu e Vittoria. Katsu Mori era um amigo de longa data do meu pai, ambos banqueiros, conseguiram dar vidas confortáveis para suas famílias. Mas ao contrário do meu pai, Katsu é um bom homem, e assim que ele percebeu que o meu pai não era tão confiável, ele se afastou. Não antes da minha mãe ficar muito amiga de Vittoria, sua esposa. Sempre fui muito bem tratada pelo casal, e sinto que posso considerar o filho deles, Kai, meu amigo. Um dos poucos que eu tenho.
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‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ Assim que eu percebi que meu pai não apareceria de fato, resolvi sair de casa por conta própria. A chuva não tardou a molhar meu cabelo e a calça e suéter pretos que eu tinha vestido para a ocasião. O cemitério ficava a vinte minutos a pé, e a caminhada ajudou um pouco a acalmar meus pensamentos turbulentos.
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‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ Cheguei ao cemitério completamente encharcada, mas nem a roupa molhada nem o frio me incomodavam, pelo contrário, as sensações eram um consolo. Passei rápido entre as pessoas presentes, não querendo ouvir nenhuma palavra de consolo, afinal, na realidade ninguém sabe realmente como agir em situações como essa.
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‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ Ao entrar na capela, onde o caixão estava, não tardou para Vittoria pousar os olhos preocupados em mim, Katsu seguindo o olhar da esposa e me encontrando parada na porta molhando o chão. Em um piscar de olhos, ambos estavam na minha frente.

— Kat, querida, onde está o seu pai? – Tori perguntou, e ao seu lado Katsu parecia furioso.

— Ele não estava em casa, fiquei esperando ele chegar, mas ele não apareceu. Então eu vim  sozinha.
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‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ Um peso inesperado aqueceu minhas costas, e me deparei com Kai ao meu lado, que tinha chegado sem fazer barulho. Ele tinha tirado o paletó do seu terno preto e pousado delicadamente sobre os meus ombros. Agradeci silenciosamente e ele me puxou para um abraço que eu não sabia que precisava até receber. Atrás dele, Katsu não parecia mais tão furioso, e eu não consegui identificar o olhar nos olhos dele.
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‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ Tudo que aconteceu depois do abraço de Kai parecia um borrão. Ele me pôs de baixo de um guarda chuva com ele, e observamos enquanto o caixão da minha mãe era levado da capela pelo cemitério, Katsu e Tori nos seguindo. Mesmo criança, sempre me considerei alguém auto-suficiente e aprendi a ser sozinha, mas ali, com Kai ao meu lado, assistindo enquanto o caixão da minha mãe era enterrado, eu percebi o quanto o suporte era necessário em algumas situações e o quanto eu gostava que ele estivesse ali por mim.
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‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ ‎ Antes da terra começar a ser jogada na cova, saí do conforto do guarda-chuva e enfrentei a chuva novamente enquanto jogava um punhado de terra em cima do caixão e dava adeus à minha mãe, esperando que aonde quer que ela estivesse, ela pudesse continuar cuidando de mim. Ao voltar para o lado de Kai, com os olhos repletos de lágrimas que eu não consegui derramar, ele me abraça de lado e me dá o melhor consolo que ele poderia me dar, o silêncio.

𝗥𝗘𝗣𝗨𝗧𝗔𝗧𝗜𝗢𝗡 - Devil's Night.Onde histórias criam vida. Descubra agora