De modo geral, há bastantes formas aceitáveis de publicar umdeterminado livro de Fernando Pessoa. Obras como o Livro doDesassossego, Fausto e outros textos dramáticos, quase todos os seuscontos e quase todos os seus ensaios foram deixados como amontoadosde fragmentos, com poucas e contraditórias indicações de comodeveriam ser articulados. E mesmo quando há indicações mais claras,teremos nós o direito de ligar peças que o autor deixou dispersas? Não éfácil responder a essa pergunta, que faz recordar as grandes discussões apropósito do restauro de igrejas e monumentos em ruínas. Com aimportante diferença de os edifícios, no caso de Pessoa, nunca teremchegado a ser levantados. Publicar Pessoa não é reconstruir, mas simconstruir. Quem organiza um livro deste autor vê-se quase sempreobrigado a dar uma ordem aos textos, pelo menos até certo ponto, adecidir que material deve ser incluído e a submetê-lo a um tratamentoqualquer (já que os originais são freqüentemente salpicados porvariantes e sinais de dubitação). A obra atribuída a Alberto Caeiro,embora tenha fronteiras mais ou menos claras, não foge da regra geral.O Guardador de Rebanhos, apesar da sua relativa coerência global, estálonge de ser uma obra acabada e estável e O Pastor Amoroso ainda menos,enquanto os Poemas Inconjuntos, segundo o próprio título indica, nem àcoerência aspiram. Não sabemos que forma nal Pessoa teria dado aqualquer das três obras, nem que forma teria assumido o livro (ou livros)que as contivesse. O autor encarou quer a possibilidade de publicar OGuardador de Rebanhos separadamente, precedido por um pequenoprefácio (ver as cartas de Pessoa a João Gaspar Simões datadas de 25-2-1933 e 11-4-1933), quer de publicar toda a poesia caeiriana num sólivro, juntamente com "uns 3 ou 5 livros das Odes do Ricardo Reis" eainda as Notas para a Recordação do Meu Mestre Caeiro de Álvaro deCampos (ver carta a jgs datada de 28-7-1932). Um outro plano excluíaas Odes mas incluía, para além das Notas de Campos, uma "Nota dosEditores", um prefácio de Ricardo Reis e um horóscopo feito porPessoa (projeto com a cota 48C/28).A presente edição abrange todos os poemas de Caeiro que localizamosno espólio pessoano (incluindo seis inéditos entre os Poemas Inconjuntos),seguidos de fragmentos (um dos quais inédito), poemas variantes, doispoemas de atribuição incerta (inéditos) e listas de poemas caeirianoselaboradas por Pessoa. Uma vez que a "prosa" de Caeiro é escassa,consideramos conveniente publicá-la neste volume. Apesar de AlbertoCaeiro não ser um escritor de prosa, algumas das palavras que teriaproferido foram registradas, sobretudo por Álvaro de Campos, nasconhecidas Notas para a Recordação do Meu Mestre Caeiro. Menosconhecida é uma "entrevista" com Caeiro, situada em Vigo e datável de1914, bem como um apontamento assinado por Caeiro, embora se tratede uma transcrição de palavras suas feita por outra pessoa. Escrito noverso de uma página da referida "entrevista", esse apontamento tambémdatará de 1914.Segundo conta Ricardo Reis, os parentes do falecido Alberto Caeiropediram-lhe um prefácio para a edição dos seus Poemas Completos.Pessoa, como de costume, foi escrevendo muitos trechos destinados aesse prefácio, com a idéia de os incluir posteriormente num único textouido, mas essa idéia, como de costume, nunca foi concretizada, emboraexista um plano pormenorizado para a organização de todo o materialescrito. Reis acaba por reconhecer, entretanto, que o seu texto "excedeuo volume natural de um prefácio" e sugere que seja publicado "comoprefácio ou como comentário separado ao livro do Mestre" (num trechocom a cota 52A/37-8). Escreve, assim, um outro prefácio mais curto, emque renuncia à sua intenção original de fazer, "em prefácio, um largoestudo crítico e excursivo sobre a obra de Caeiro" por impossibilidadede produzir um estudo que o satiszesse. "Não se pode comentar",explica, "porque se não pode pensar o que é directo, como o céu e aterra." É esse breve prefácio que publicamos aqui, deixando o grande einacabado estudo ricardiano sobre o Mestre para um outro livro.Também para um outro livro cam as Notas para a Recordação do MeuMestre Caeiro. Damos conta, em posfácio, de vários pontos abordadospor Reis no seu prefácio e por Campos nas suas Notas, bem como porThomas Crosse no seu "Translator's Preface", por António Mora em ORegresso dos Deuses e por Fernando Pessoa num artigo inacabadodestinado à revista A Águia, onde pretendia noticiar o aparecimento do"Descobridor da Natureza", do "Colombo das sensações verdadeiras".Optamos por não incluir todo esse material ensaístico sobre Caeiro,atendendo ao ditame "Toda obra fala por si, [...] quem não entende nãopode entender, e não há pois que explicar-lhe", que Reis escreve nopequeno prefácio seu que aqui publicamos.A propósito de ensaios sobre Caeiro, escritos já não por Pessoa maspor pessoanos, os interessados podem consultar a exaustiva bibliograacomentada de Alberto Caeiro elaborada por José Blanco e publicada emPortuguese Literary & Cultural Studies 3, "Pessoa's Alberto Caeiro", 1999.Para a xação do texto, o nosso critério consistiu na escolha daprimeira lição escrita e não riscada. Isso não envolve uma armaçãoacerca da prevalência, em teoria, da primeira lição ou da última. Mas averdade é que a não-observação desse critério, no caso de Pessoa emgeral e no de Caeiro em particular, pode conduzir à deformação dotexto.Se compararmos as variantes, introduzidas por Pessoa nos seusoriginais de O Guardador de Rebanhos, com aquelas que ele efetivamenteadotou ao publicar quase metade desses poemas em revistas, vericamosque ele aproveitou na maioria das vezes a última variante. No entanto,se nós optássemos sempre pela última variante no caso dos poemas nãopublicados por Pessoa, aconteceria, por exemplo, que a célebrehesitação no poema xv de O Guardador de Rebanhos, onde se lê "duas"por cima de "quatro" no primeiro verso ("As quatro canções queseguem"), teria que prevalecer, dando então "As duas canções queseguem". Isso apesar de a simples leitura das canções "doentes" que seseguem mostrar tratar-se de quatro, e não de duas.Outro exemplo: no poema ii, o adjetivo "eterna" no verso "Para aeterna novidade do mundo" sugeriu a Pessoa nada menos que cincoadjetivos variantes: "perpétua", "súbita", "serena", "grande","completa". Nenhum deles aparece escolhido, ou sequer preferido.Cada um vem alterar o sentido, encaminhá-lo numa direção diferente.E, para além do fato singelo de não se saber, com certeza absoluta, qualdeles apareceu ali em último lugar, qualquer escolha desregularia opoema inteiro. Outro exemplo ainda: no último verso do poema xxiii, overbo "parecer", sem ser riscado, tem escritas por baixo, sucessivamente,duas formas alternativas, "saber" e "perceber". Nenhuma delas épreferida, nenhuma delas é cortada. O que pode ser claro para o leitorde Caeiro é que nenhuma delas é inteiramente satisfatória, quenenhuma delas conduz a uma claricação do verso. Seria uma óbviaalteração para pior, portanto, o que se conseguiria fazendo a correçãoque o autor não fez.Indicam-se nas notas as variantes, bem como as datas de composição(quando existem) e outras informações textuais.Corrigem-se os erros evidentes e faz-se a atualização ortográca. Masnão se uniformizam as graas de "cousa" e "coisa", nisso seguindo umacerta nota de Pessoa (75/67v.): "Ai dos que não podem compreender queo oiro é brilhante e o ouro baço!".A xação do texto e as notas de O Guardador de Rebanhos foramrealizadas por Fernando Cabral Martins, estando os restantes poemas acargo de Richard Zenith, que também realizou o trabalho de pesquisano espólio de Pessoa. A organização geral e as escolhas textuais são deresponsabilidade dos dois editores. Pelo seu contributo inestimável,agradecemos a Teresa Rita Lopes, Manuela Parreira da Silva, ManuelaRocha e Irene Freire Nunes.
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