Depois daquele dia...

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O vilarejo passou por várias mudanças significativas. A visita do lobo perto dos portões deixou todas as pessoas à flor da pele e mais aterrorizadas com as lendas. A certeza de que a ameaça poderia voltar os fizeram tomar uma série de medidas protetivas. Tais como: a vigilância pesada no portão principal e nos arredores do vilarejo; um maior controle em quem sai ou entra; e todos deveriam ir à igreja todos os dias até julgar ser o suficiente. O sacerdote alegava que tinha o dever de tentar purificar os moradores por conta da invasão do lobo, e mesmo sob protesto minha mãe me obrigava a acompanhá-la todos os dias.

Eu prefiro a morte do que isso.

Se fosse apenas o sermão diário que o sacerdote fazia nas cerimônias, eu não reclamaria tanto, desde que abri os olhos estou familiarizado com esses discursos religiosos, porém esse novo sermão fugiu completamente da rotina. O ódio ao sobrenatural cresceu exponencialmente, na verdade isso já era comum entre as pessoas, porém, com a "invasão" do lobo – como o sacerdote chamou – apenas ratificou a crença na lenda da fera. E todos estavam nervosos em como seria a próxima lua cheia, nervosos não, apavorados melhor dizendo. Deveriam colocar mais animais como sacrifício? Os moradores se perguntavam aos cochichos pelas ruas. O lobo se saciaria dessa vez?

Entretanto, o que mais me preocupava mesmo foram as palavras ditas pelo sacerdote na última reunião na igreja.

As ruas que levavam ao centro do vilarejo estavam cobertas de neve por conta da nevasca que ocorreu na madrugada. Mesmo com esta dificuldade, as pessoas caminhavam decididas em participar mais uma vez daquela tortura diária. Quando expus esse pensamento minha mãe me repreendeu por longos dez minutos, algumas coisas é melhor guardar no pensamento. Enfim, ao chegarmos no local fomos em direção ao banco que ficava mais ao fundo, já estava bastante familiarizado com ele. Agarrei o tecido da minha capa observando todos os moradores ocuparem os bancos de madeira, fazer isso me trazia um pouco de conforto. Ultimamente é muito difícil não estar com a capa, ainda mais nestes tempos de pavor que as pessoas exalavam, elas pareciam mais predatórias do que antes e somente a minha mãe e a capa me traziam conforto e alívio destes sentimentos negativos dentro dos muros.

Meu corpo estava inquieto e para completar quando olhei para as minhas mãos senti um formigamento. Crispei os lábios e juntei elas a fim de ver se a sensação passava.

— Está sentindo de novo? — minha mãe sussurrou a pergunta.

Balancei a cabeça confirmando e logo ela juntou as suas mãos nas minhas. Na mesma hora o formigamento diminuiu, infelizmente demorava um pouco para passar, mas com o contato da mais velha aliviava por alguns instantes até passar por completo.

Uma semana se completou desde que ajudei os irmãos lobos a sair do vilarejo. Uma semana preso dentro dos muros altos sem a possibilidade de sequer visitar a minha avó. Essas medidas protetivas estavam começando a me irritar profundamente.

A cerimônia ia finalmente para o encerramento, logo poderíamos voltar para casa e ficar longe destas pessoas.

— E não se esqueçam de obedecer todas as ordens dos nossos caçadores e das palavras de deus — o sacerdote concluía os avisos finais — Fiquem atentos meus irmãos, o demônio em forma de lobo é ardiloso, não podemos subestimá-lo. Todo sinal de magia é perigoso para nós que somos fiéis a deus, os simpatizantes com esse tipo de feitiçaria terão a sua punição. Não confiem em ninguém de fora do nosso vilarejo e tomem cuidado com as bruxas e suas artimanhas, não sabemos o que mais pode ter no território da fera.

Assim que o sacerdote finalizou, todos sem exceção, alguns mais discretos que outros, olharam na direção da minha mãe. Aquela acusação silenciosa queimou furiosamente dentro de mim, trinquei o maxilar e apertei as mãos em punhos ao ponto de sentir a dor das unhas perfurarem superficialmente a palma. O formigamento que naquela altura já havia cessado voltou com a mesma proporção da raiva que borbulhava em meu corpo. Minha mãe dedicou anos da sua vida ajudando na cura daquelas pessoas, quantas vezes acordaram ela na madrugada porque uma de suas crianças estava mal? Ela nunca recusou a ajudar, sempre os recebeu de bom grado.

Entre Rosas Vermelhas e Lua Cheia • SoogyuOnde histórias criam vida. Descubra agora