Um Dia Feliz

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Era gente do mundo todo interessada em uma única coisa e do mundo todo havia gente que depositou farelos de esperança em milagres ou em mãos proféticas que podiam reverter males causados por fatores naturais que dificilmente compreenderemos. [...] Observe quando cai um dominó em uma extensa fileira: ele não só derruba aos outros, há algo muito mais intimista nisso. Ao cair, se aproxima, junta-se. Assim, vários unem-se à queda. Mas aonde leva tudo isso? Pelo visto, só a última peça saberá.


ZOLTAN

O agradável sol de primavera adentrou pela grande janela aberta no início daquela manhã de setembro, iluminando cada canto escondido daquele cômodo. O vento soprou para dentro do recinto, ergueu a cortina branca que tremulou e trouxe consigo o aroma das flores do pé de laranjeira que se tornava cada vez mais bela enquanto crescia no jardim do respeitável casarão localizado no distrito do Bom Retiro em São Paulo, e para a sorte de Zoltan Kartal, a árvore se desenvolvia adjacente à janela, lhe trazendo o frescor de seu aroma e o som agradável do chacoalhar das folhas quando o vento a tocava com gentileza.

Kartal inspirou o ar com força e relaxou os ombros, isso fez os pulmões se encherem com o ar puro e perfumado. Então, chega a hora de seu espetáculo particular, daquele que só diz respeito a si mesmo e ao seu único e fiel espectador: o reflexo no espelho que jamais se entreolha. Os dedos longos e delgados da mão esquerda se curvam ao redor do braço do violino. Em seguida, ergueu a destra, onde jazia o arco, ao mesmo tempo em que arrumava a postura e segurava a parte inferior do instrumento com a ponta do queixo liso em contraste com o volumoso bigode que cobre o lábio superior. Fechou as pálpebras e concentrou-se por alguns segundos e, momentos depois, deslizou o arco sobre as cordas, permitindo que a melodia melancólica escorresse de seu violino e se derramasse por todo o ambiente.

Seu corpo passou a balançar de um lado para o outro de forma muito singela, no ritmo harmonioso e soturno da velha cantiga de sua terra natal, enquanto prosseguia sem mais interrupções.

— Não gosto dessa versão! — Uma voz infantil soou e conseguiu sobressair a música. Pelo tom proferido, a menina havia dito mais de uma vez, na tentativa de ser escutada.

Zoltan parou imediatamente e olhou para a origem do som. Deparou-se com a figura da pequena Esen encostada no batente da porta abraçada com Branca, a gata de estimação da família, que esticada do jeito que estava, tinha quase o seu tamanho. A pequena Kartal coçou os olhos de pálpebras avermelhadas e inchadas, indicando que havia despertado muito recentemente.

— Esen, acordada a essas horas? — O Kartal abaixou o violino e virou-se totalmente na direção da criança. Analisou os longos cabelos tom de mel de sua sobrinha que, além de assemelhar-se com o seu na coloração, também formavam macios e graciosos cachos nas extremidades. Era impossível negar que naquela criança não havia o sangue da poderosa família otomana. — Onde estão as empregadas?

A pergunta surgiu após o tio perceber que os cabelos de Esen estavam desgrenhados, o que fez com que o homem aproximasse suavemente as sobrancelhas.

— Preparando o café da manhã. — Ela respondeu. — Não sabem que acordei. Vim andando de fininho, na ponta dos pés junto de Branca...

— E por que, Esen?

— Para lhe dizer pessoalmente que não gosto dessa versão, tio Zoltan. — Esen disse com seriedade ímpar, muito similar aos trejeitos do Kartal diante de si. — Nem a Branca! — E ergueu um pouco a gata peluda, alva feito a neve, que trajava um volumoso laço vermelho em seu pescoço felpudo como uma juba. Branca piscou lentamente seus grandes olhos verdes, para em seguida soltar um miado agudo e baixo, passando a se remexer desengonçadamente, dando coices no braço da criança, a fim de escapar das mãos pequenas.

A Graúna DouradaOnde histórias criam vida. Descubra agora