Em meados de Dezembro de 1899, os jornais das principais capitais do país noticiaram que um zepelim-batedor do Exército Brasileiro derrubou um pequeno objeto voador não identificado, de formato redondo, em mar do território de Salvador, Bahia. O objeto foi encontrado três dias após o incidente, depois de uma caça constante das autoridades pelo mesmo. Acidentalmente, foi resgatado por operários do Porto de Salvador. Boatos correram a respeito de uma mensagem escrita e guardada no interior daquela estranha cápsula de origem desconhecida, mas que só Deus saberia se foi encontrada ou segue muito bem escondida na gaveta de alguém. E, digo-lhes, tal informação não é dada à toa, sem razão. Só é mais um capítulo que antecede toda essa confusão inevitável, que uniu pessoas desconhecidas, com diferentes vivências, em prol de um bem maior — ou de seus maiores bens, que não cabem à estes versos.
JOSÉ SALOMÃO
A chuva caía em filetes rápidos e robustos contra a plantação do pequeno jardim no terreno defronte à humilde casa de taipa, cujo as janelas eram somente aberturas encobertas por simplórias cortinas feitas de panos estampados com margaridas. A cortina foi amarrada ao canto, permitindo que Salomão observasse com admiração aquela chuva de verão que aconteceu no meio de tarde. Foi um evento bastante inesperado para um dia que estava ensolarado durante toda a manhã. O clima imprevisível não o incomodava, por isso seguiu a colocar folhas e flores na panela de barro. Flor seca de arnica, anis estrelado, capim santo e camomila. Uma mistura agradável que seria adoçada posteriormente com mel puro, que conseguiu trocar por uma dúzia de ovos frescos, oriundos das galinhas que agora estavam recolhidas no galinheiro improvisado que Salomão fizera há alguns meses.
Enquanto a água fervia junto às ervas, José Salomão foi até o outro cômodo, tão pequeno quanto a cozinha, assistir o repouso tranquilo de sua mãe, Maria Laurinda, sobre a rede que balançava de forma extremamente suave, por conta dos movimentos discretos do corpo adormecido, imerso em sonhos profundos. Dormir ao som de chuva era, de fato, uma das maiores bênçãos que Deus poderia dar aos seus filhos, na opinião de Salomão. Aproximou-se dela e ajeitou o lençol fino sobre o corpo, impedindo que o vento frio que adentrava pela janela não a afetasse tanto. José andou até a outra ponta do quarto, ao lado de sua própria rede, e pegou o violão que estava encostado na parede. Saiu do quarto tão silencioso quanto havia adentrado.
Aproveitaria então para sentar-se do lado de fora, na varanda, e tocar uma música suave. Os dedos começaram a tocar as cordas e pôde sentir a vibração suave na pele, enquanto o som se espalhava de forma harmoniosa, junto à voz macia e baixa, que seria muito agradável aos ouvidos se Salomão não estivesse tão envergonhado só de perceber os olhos enérgicos das galinhas curiosas, encolhidas umas às outras, e aprumadas em sua direção, protegidas sob o teto de folhas e gravetos do abrigo que José havia lhes feito. Elas o encaravam sem qualquer discrição, apreciando o talento contido. Salomão sorriu consigo mesmo ao se sentir tolo por estar com vergonha de cantar para meros animais.
O ritmo da música começou a acelerar e a voz saiu com mais ânimo, embora ainda abafada pelo som da chuva.
Esta terra d'interesses
Nesse mundo enganador
Não há homem que não seja
Mais ou menos pescador
Pesca o pobre, pesca o rico
Pesca aqui, pesca acolá
Nesse ponto, José Salomão já havia se esquecido da panela no fogo. Apenas cantava e apreciava o mundo à sua volta. O vento frio e úmido beijava sua pele cor ébano e os olhos de um preto profundo pareciam iluminados ao olhar a paisagem simples. Uma galinha bateu as asas, incomodada com a aproximação da outra companheira, aquilo fez um sorriso brotar nos lábios carnudos de José. Prosseguiu a cantarolar, cada vez menos retraído.
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A Graúna Dourada
AdventureO mundo parece fantástico no século 19, onde zepelins sobrevoam os céus e os cidadãos possuem uma vida confortável, graças à tecnologia a vapor que revolucionou toda a sociedade. Porém, a Crise do Carvão se espalha, ameaçando todo o progresso alcanç...