VIII

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Havia um espaço com pouca luz, enfeitado por velas e fotografias de animais. Joana encarou o lugar aturdida, pois nunca vira aquela sala antes. Havia diversos quadros adornando as paredes, o de destaque era de um panda com feições tristes ao lado da imagem de um gato que segurava uma lupa e vestia um boné de detetive.

João espiava atrás da porta e acompanhava o olhar de Joana. Era uma sala fascinante, ficou curioso pelo semblante melancólico do panda, o que será que ocorrera com ele ao ser fotografado? Ou já se sentia triste antes?

O panda limpou as lágrimas de seus olhos e sorriu para João.

"Você pode ler meus pensamentos?", questionou o adolescente curioso.

"Eu posso te escutar", enalteceu o panda, alargando mais seu sorriso.

Ao observar as feições confusas do pequeno jovem, o panda prosseguiu.

"Os pensamentos, que vocês humanos chamam, são criações suas". O panda olhou para o copo d'água intocado por anos do quadro ao lado, e finalmente bebeu um gole. "A espécie de vocês possui uma visão limitada", continuou o panda, "poucos são os que acessam os mistérios ocultos do véu da vida."

João fechou os olhos e abriu novamente. Um panda bebê desenhado num quadro proferia palavras insanas com tom de sabedoria. Não sabia se fingia acreditar ou se ria.

Já Joana, curiosamente, conseguiu ouvir os "pensamentos" de João também, aliás, caso João não interrogasse o panda, ela pensaria que ele verbalizara cada palavra, tamanha intensidade de volume exteriorizada. Para ela, escutar o mundo etéreo era natural, desde pequena sentia-se diferente, percebera que via pessoas que descobriria, a posteriori, serem invisíveis para o mundo terreno. Entrementes, nunca vira ou ouvira um espírito animal até então. Já a sua avó Zao, sim, esta se comunicava constantemente com o mundo animalesco, fora ela quem ensinara Joana a lidar melhor com suas habilidades mediúnicas.

Pensar em Zao deixava Joana triste e feliz ao mesmo tempo.

Triste pela perda. Pela dor. Saudade.

Feliz por saber que a avó Zao vivera, tivera a dádiva de conhecê-la, aprendeu com sua sabedoria, inclusive a fazer mooncake, bolo lunar chinês feito de feijão vermelho. Sua avó aperfeiçoava o mooncake com especiarias brasileiras, pois como a nora era do Brasil, descobrira a delícia do brigadeiro e beijinho, assim seu mooncake passou a ser reconhecido como uma integração cultural.

Enquanto Joana divaga consigo, João ainda segurava os petiscos para gatos e absorvia os acontecimentos recentes, era um somatório de informações para assimilar rapidamente, poderia enumerar até:

1. Ser convidado a uma festa por Joana – de modo que a temática era incomum e a anfitriã mal o conhecia.

2. O convite recebido era peculiar e, curiosamente, mesmo não conhecendo Joana, sentia que não era ela a remetente.

3. Ver gatos misteriosos agindo de forma suspeita, confabulavam de alguma forma e João desconfiava seriamente de que havia algo a mais ali.

4. A imagem de um panda se mexer num quadro e falar com ele.

5. Joana agia como se tudo isso fosse normal.

E havia mais um elemento para completar a lista: os gatos que João e Joana seguiram sumiram, só se via o panda.

Como se fosse invocado o panda pigarrou.

"Não me chamem de panda, meu nome é Ananda."

Joana, cautelosa, resolvera exteriorizar sua curiosidade.

"E o que podemos fazer por você, senhor Ananda?"

"Primeiro, pode retirar o senhor de sua sentença. Olhe para mim, eu sou um bebê panda. Muito novo para ser senhor", riu o urso sozinho.

Tanto Joana quanto Ananda sabiam que a alma dele estava longe de ser a de um bebê e Ananda, astuto, sabia que Joana também sabia disso. Já João, bem, João ainda se encontrava em negação.

"Certo, Ananda", continuou Joana, "Por que está aqui?, onde foram os gatos e desde quando esta sala existe?"

João balançava o pé direito ansioso, sentia-se agoniado pela resposta.

Ananda que não era um bebê, mas era panda, sorriu zombeteiro. Ele adorava debochar dos humanos, ainda mais que estes eram detentores das principais razões da extinção de sua espécie. Até em Gansu era difícil viver. A mudança climática resultante do agravamento do efeito estufa, o famigerado aquecimento global, existia. E tal calamidade junto à caça aos pandas contribuíram para um somatório de mortes. Pandas feridos e enfurecidos viviam escondidos pensando numa vingança. Ananda tentava conter estes espíritos, pois era uma reencarnação de um monge, ainda assim, Ananda precisou conter sua raiva interna.

"É por isso que você estava chorando?", João resolvera, finalmente, manifestar-se.

Ananda respirou fundo, não costumava gostar de céticos.

"O que você acha?", berrara o não-bebê panda.

As luzes das velas diminuíram sua intensidade com o berro de Ananda, assim como os quadros de animais na parede começaram a tremer.

"Desculpe, não quis ofendê-lo".

Ananda começou a chorar novamente. Desta vez, não de tristeza, emocionara-se com a humildade do garoto.

"Ah, venha aqui". O não-bebê saltou do quadro e abraçou João de surpresa.

Uma lágrima tímida escorria da face de Joana ao observar a cena.

"Junte-se a nós, descendente de Zao", convidou Ananda enquanto piscava para um ponto distante.

Com passos silenciosos, a garota se unira ao abraço de urso.

Zao observava de longe e retribuiu a piscada de Ananda. A velha sábia segurava um leque vermelho com dizeres pintados de forma musical.

A volta dos que não foram

Eu já vou, tá?

Volta a lembrança.

Volta a troca.

A vivência compartilhada.

Volta os que não foram

Os que sempre viverão

Mesmo tendo, fisicamente partido.

Vivem de outras formas.

Voltam de uma forma própria

Pois nunca serão esquecidos.

(o particípio é invertido)


A Volta dos que (não) foram.Onde histórias criam vida. Descubra agora