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Acordei bem cedo naquela manhã. Tudo estava encaminhando bem, o café foi preparado com o tempo necessário que um feriado de Natal exige, e o pão... Bom, o pão tinha acabado, o que me forçaria a sair de casa de bicicleta e rodar o bairro na busca de uma padaria ou supermercado aberto. Saindo do apartamento, me deparo com Luís, o vizinho do apartamento ao lado, chegando com algumas sacolas.
- Bom dia, Saulo! Feliz Natal! - o constante bom humor dele era quase insuportável, não fosse os perfeitos cachos pretos e a pele amadeirada em tom de jacarandá.
- Feliz Natal, Luís. Precisa de ajuda com as compras?- Oferecer ajuda foi um costume que minha mãe me fez criar que, por vezes, me atrasava para o trabalho.
- Não, não.- ele respondeu prontamente.- São poucas coisas... E estão leves. - Houve um silêncio extremamente constrangedor.- Saindo no feriado? Indo para a casa de alguém comemorar o feriado?- ele finalmente perguntou.
- Não.- Sorri.- Estou indo comprar pão, o meu acabou.
- Entendi! O supermercado da esquina está aberto.- ele respondeu, quase deixando janela aberta para falar mais alguma coisa.
- Bom,- eu cortei o silêncio dessa vez.- eu vou indo.
- Claro. - Ele sorriu meio sem graça.- Então, hoje vou fazer um almoço de Natal, dois amigos combinaram de vir. Se quiser se juntar a nós... caso, claro, não tenha outros planos.
- Talvez eu vá. Natal não é muito minha praia.
- Tudo bem. Se decidir ir, só tocar na campainha.
- Beleza... até mais.
Disse, saindo rápido antes que a conversa se estendesse mais. Não que eu não gostasse dele, mas ficar perto dele me fazia sentir... coisas. Fui até a padaria, comprei pão, alguns biscoitos, e um vinho, para caso eu decidisse ir na casa do Luís. No caminho, vendo as luzes de Natal, me lembrei das decorações que eu ajudava minha vó fazer, o presépio, os pisca-piscas, todas essas coisas; lembrei de ir comprar presentes com minha mãe e minha tia, de ajudar preparar o almoço de Natal; e lembrei da inexistência disso nos último anos. Minha mãe se mudou para outro país, eu me mudei pra outra cidade, minha tia ficou na cidade cuidando da minha avó até os últimos dias, e assim as festividades se perderam. Por isso não comemorava Natal nem ano novo: não tinha mais significado e não tinha amigos para isso. Às vezes isso me deixava triste.
Chegando em casa, me servi do café, sentei-me à mesa e encarei a garrafa, imaginando se eu iria ou não. Levei a garrafa para o banheiro e a olhei em cima da pia enquanto tomava banho. Encarei ela jogada na minha cama enquanto escolhia uma roupa casual mas não informal demais (acabei optando por uma bermuda jeans e uma blusa branca sem detalhes). "Não vou perder nada se tentar", foi o pensamento que me moveu enquanto eu fechava a porta do meu apartamento e caminhava em direção ao 205. Parei na porta e encarei o horário no meu celular: 13:15. "Será muito tarde? Ou muito cedo?", de súbito senti meu corpo involuntariamente tocar a campainha. Luís abriu a porta com um sorriso largo.
- Você veio!- ele disse, carregando no ombro um pano de prato escrito "O melhor cozinheiro do mundo".
- E trouxe vinho!- eu disse de uma forma extremamente desajeitada quase derrubando a garrafa no chão. Luís gargalhou, o que me deixou mais calmo e á vontade.
- Entre!- Segui o comando, deixando os sapatos na parte de fora da casa (outro costume ensinado . Valeu, mãe!).- Fique à vontade. Uma de minhas amigas infelizmente não vai poder vir, então estou esperando a outra dar algum sinal de vida.
O apartamento era muito aconchegante: estantes de livros espalhadas pela sala, uma televisão no meio de uma delas; paredes em tons cinza claro, uma cozinha conjugada muito bem planejada, com móveis azuis, uma geladeira cinza e um fogão preto. Era um lugar lindo e confortável.
- Estou tentando pensar no que fazer de acompanhamento desse frango, mas não penso em nada muito "festivo".- Luís disse.
- Bom, quais são seus ingredientes?
- Tenho algumas frutas, tomate, algumas outras coisas na geladeira... ah, palmito, azeitona... milho... muita coisa.
- Posso fazer uma receita que minha vó me ensinou?
- Sinta-se à vontade.
Peguei milho, uva-passa, tomate, palmito, alface, abacaxi e hortelã, cortei tudo, e misturei com maionese. Não sei qual o nome desse prato, mas sempre que faço acho delicioso. Enquanto fazia a comida, ele fez questão que eu usasse um avental estampado com o corpo de um jogador da seleção de futebol, o que foi hilário levando em conta que a) minha vó tinha um igual e b) eu sempre detestei futebol. Conversamos muito e nos conhecemos bastante. Luís soube sobre minha relação com as festividades de fim de ano, ele me contou sobre a história dele. Ele teve que sair de casa bem cedo, foi expulso pelos pais quando se assumiu gay aos dezessete anos. Viveu com uma tia por um tempo até conseguir trabalhar e alugar uma kitnet no centro, perto do trabalho e da faculdade. Em seus vinte e seis anos já namorou uma vez, durante quatro anos, mas a relação acabou a dois anos por conta de uma traição do cara. Eles ainda conversam como amigos, mas ele tende a deixar a distância crescer bastante porque não quer ter contato assim com o ex. Seu irmão mais velho o visita no meio do ano sempre que pode, a contragosto dos pais que ainda não conversam com o Luís.
- Minha relação com me assumir não foi muito boa... obviamente nada comparado ao que você passou, que eu sinto muito inclusive... deve ter sido um período péssimo. Mas minha mãe não recebeu bem a história e finge até hoje que não sabe do assunto. Meu irmão não se importa, minha tinha muito menos e minha vó nunca fez um alarde sobre isso, mas sempre me alertou sobre "os perigos do mundo".- fui cortado por meu telefone tocando em meu bolso: era minha mãe.- Preciso atender, é minha mãe.
Peguei o telefone, respirei fundo, e atendi.
- Feliz Natal, meu filho...- ela disse, com uma voz de sono.
- Feliz Natal, mãe. Como a senhora está?
- Tá tudo bem por aqui. Estou na casa de uma amiga, passamos o dia bebendo com mais outras quatro. E você?
- Tá tudo bem tambem. Eu tô... bom, eu tô na casa de um... amigo.- houve um silêncio.
- Amigo? Mas amigo amigo ou amigo amigo?
- Um amigo... se fosse um amigo acho que a senhora não gostaria de saber sobre.- outro silêncio.
- Saulo, eu quero que você seja feliz, sendo exatamente quem você quer ser. Eu vou ficar feliz com suas decisões sabendo que elas estão te levando aonde você quer.- senti minha garganta queimar e uma lágrima escorrer. Observei para ver se Luís estava perto.
- Não é um amigo mas... eu queria que fosse.
- Mas o que impede?
- Ele é meu vizinho, se der ruim, alguem vai ter que mudar e tudo vai ser um grande problema.
- E se tudo der certo?
- Não sei se quero arriscar. Ele é legal, mas...
- Mas?
- Eu sou eu, né.
Houve uma outra pausa.
- Como assim?
- Não quero ter que falar sobre isso logo hoje. Quero fazer o almoço e comer com ele.
- Usa camisinha.
- Mãe!
- Qual o nome dele?
- Luís.
- Luís... mande um beijo pra o Luís.
- Tá bom, agora vou voltar.
- Tchau, meu filho.
- Tchau, mãe.
- Te amo.
Foi a primeira vez em 26 anos que ouvi minha mãe dizer que me ama.
- Te amo também.
Voltei enxugando as lágrimas.
- Eita, brigaram?- Luís perguntou, preocupado.
- Não. Só... tivemos uma conversa boa.
- Entendi...- ele se apoiou no balcão na minha frente, secando as mãos no pano de prato. - Quer falar sobre?
Eu relutei de início. Não era um completo estranho mas não era alguém que eu conhecia a fundo, mas "e se tudo der certo?"?
- Ela... falou pela primeira vez que me ama.
Ele me olhou, os olhos dele brilhavam.
- E isso foi gostoso de ouvir, né?
- Eu meio que esperei isso minha vida toda.
Deixamos esse assunto de lado e continuamos contando histórias de ensino médio, de términos, e, quando nos demos conta, já era 15 horas e a amiga do Luís não tinha dito nada ainda.
-Bom, eu tô morrendo de fome, então vamos nos servir.- ele disse.
Sentamo-nos à mesa, comemos e conversamos por um bom tempo. Depois de um tempo, abrimos o vinho e decidimos assistir filmes de Natal na Netflix. O escolhido foi Um Crush Para o Natal, que nos fez chorar, já que estávamos bêbados no final do filme.
Olhei meu celular, já eram 23 horas.
- Meu Deus, olha a hora! Tenho que trabalhar amanhã de manhã!- eu me lembrei, ficando sóbrio instantaneamente.
- Espera, antes de ir, quero te dar uma coisa.- meu coração bateu um pouco mais forte. Ele tirou uma caixa embrulhada em papel vermelho. - Comprei mas tinha receio de você não gostar de mim, então ia deixar aqui até eu ter vontade de comer.- ele corou.
Era uma caixa de bombons, o que eu sou viciado até hoje.
- Eu... obrigado, Luís! Eu não te trouxe nada!
- Não precisa! Você já me deu tudo que eu poderia querer hoje: uma companhia para não passar o Natal sozinho.
Ficamos nos olhando por longos e constrangedores 15 segundos.
- Bom, muito obrigado!- Abracei-o e me direcionei à porta.
- Sempre que quiser conversar ou precisar desabafar, estou aqui. Bom, não "sempre", mas de segunda a sexta após as 18:30 e qualquer hora aos finais de semana... levando que conta que geralmente acordo as 10:30.
Senti meu rosto queimar e olhei pra o chão, rindo.
- Bom, digo o mesmo, nos mesmos horários.- rimos e eu fui para meu apartamento todo besta como se fosse um adolescente de 15 anos que acabou de encontrar o namoradinho.

Naquela noite eu dormi bem, mas meio triste por saber que nunca teria o Luís na minha vida de outra forma (sim, estava meio apaixonado depois do primeiro "encontro". Eu sou canceriano, não me julgue.).

Pisca-piscaOnde histórias criam vida. Descubra agora