Eu simplesmente ia surtar.
Nos últimos dois dias, decidimos como seria a virada de Ano Novo. Diferentemente de todos os outros anos, não fiz nada: passei a noite dormindo e acordando à meia noite com a queima de fogos na vizinhança. José e Luís simplesmente não me permitiram fazer o mesmo esse ano.
- Eu não vou deixar você passar o Ano Novo dormindo e sozinho, Saulo. Sem chance.- Luís disse entrando na minha casa depois do trabalho.
- Eu não sei como vou ficar acordado até a meia noite sem ser apático ou melancólico.- minha desculpa era plausível mas nem um pouco aceitável para a teimosia taurina de Luís.
- Todo mundo é apático e melancólico no dia 31. Você já sabe que roupa vai usar?
- Essa?- fiz um gesto simbolizando o que eu estava vestindo.
- De jeito nenhum! Vamos olhar seu guarda-roupa.
Fomos até meu guarda-roupa e vimos que não havia muitas opções além de preto e cinza. Luís fitou todas as roupas e respirou fundo em uma mistura de "que merda" com "o que é que eu faço?".
- Você pode passar com essa blusa- uma camisa social preta.- e essa calça.- uma calça de alfaiataria cinza.
- Tudo bem.
- Você tem ferro de passar roupa?
- Não...
- Como assim você...?- ele suspirou mais um pouco e pegou a camisa.- Eu vou me barbear e cortar o meu cabelo e tomar banho e... passar sua camisa. Esteja de banho tomado às 20 horas.- e saiu de casa apressadamente.
Geralmente, Luís era uma pessoa calma, mas agora ele estava estressado e comprometido em fazer com que tudo estivesse perfeito para todos. Em parte, acho que ele tinha medo de que algum de nós nos sentíssemos deixados de lado ou deslocados, mas acho que é a forma dele de demonstrar que se importa em como nós nos sentimos em datas como essa. Diferente do dia do natal, quando ele estava alegre e brilhante, agora ele estava veloz e levemente fosco, como um Porche em alta velocidade.
Fiz minha barba, tomei um bom banho morno demorado, vesti a calça, calcei meu sapato e coloquei uma regata canelada branca. Fui até a geladeira e selecionei qual dos vinhos levaria, juntamente com uma garrafa de espumante e um fardo de cerveja. Iríamos para a casa do João, e lá encontraríamos o José, o dono da casa, e alguns colegas do João. Fui até o apartamento do Luís e entrei. Eram exatamente 19:50 e eles estava vestindo uma versão invertida da minha roupa: uma regata canelada preta, uma calça de alfaiataria branca e sapatos brancos.
- Uau, você está... sua roupa é... Você está lindo.- eu disse, sentindo meu rosto corar e tendo como resposta uma quebra na rigidez do rosto de Luís, dando espaço a um sorriso branco e largo.
- Você também, Saulo. Eu gostei da sua roupa assim. Você ainda quer vestir a camisa?
- Eu deixo que você decida.
Ele veio até mim, passou a mão ajeitando um fio rebelde do meu cabelo.
- Eu acho que você está perfeito.- ele analisou meu rosto como um crítico analisa uma pintura num museu.- Desculpa pelo comportamento mandão mais cedo, eu...
- Tudo bem, Luís. Às vezes eu preciso de um pulso firme.
Nos fitamos por longos 5 segundos até ele quebrar o silêncio.
- Vou pedir o Uber.Chegando na casa do João, José me puxou para a cozinha ao ponto que João carregou Luís para a sacada onde um casal estava conversando.
- Vestindo combinando, chegando corados e cheio de olhares um pro outro. Rolou alguma coisa?- José perguntou, guardando minhas cervejas no congelador.
- Não.
Ele me olhou como se eu estivesse mentindo ou escondendo algo.
- O que foi?
- Nada, eu... Toda vez que ele olha no fundo dos meus olhos eu sinto como se eu estivesse descendo uma montanha russa.
- Cara, você tá afim dele. E está tudo bem.
- Não está! Não posso fazer nada para não constranger ele ou fazer com que ele se afaste.
- Pela forma que ele te olha, acho que é algo recíproco.- José disse, abrindo uma cerveja e entregando-a a mim.
- Ele olha daquela forma pra todo mundo. Ele só é... educado.
José tomou um longo gole da cerveja que abriu pra si, me olhou sorrindo.
- Vamos fazer uma aposta. Se quando a gente chegar na sala ele estiver procurando por você, à meia noite você dará um beijo nele.
- José...
- Qual é? Se ele "só é educado", não vai estar desatendo na conversa procurando por você.
Eu refleti. De fato havia uma lógica em seu pensamento que era irrevogável. Respirei fundo e dei um longo gole na minha cerveja. "É ano novo", pensei. "Qualquer coisa peço desculpa e coloco a culpa na bebida". Com isso em mente, segui o José até a sala, que tinha uma vista livre para a sacada. Para minha surpresa, Luís estava olhando para mim quando eu cheguei na sala, abriu um leve sorriso, e voltou sua atenção rapidamente para João que falava algo muito ferozmente. José me olhou e cantarolou baixo
- Can't wait for your kiss.
- Filho da Puta.Ficamos todos conversando durante a noite, e foi tão bom que só nos demos conta do horário quando o despertador no celular de José tocou.
- Faltam dez minutos, galera! Vamos colocar a mesa.
Nos levantamos e uma onda de ansiedade remexeu a bebida em meu estômago. Colocamos à mesa e fomos novamente até a sacada. Um minuto. Ao longe, conseguíamos ver o brilho dos fogos começando a tomar conta do céu. Dez. Nove. Oito. Sete. Seis. Cinco. Quatro. Três. Dois. Um. Tomei toda coragem em meu corpo e, quando Luís me olhou, puxei sua nuca para um beijo que, para minha surpresa, foi retribuído. Eu me considero um experiente em beijos, mas a forma com que nossas línguas dançaram uma com a outra foi diferente. O gosto frutado do drink de framboesa em sua se misturou com o de cevada na minha e, de repente, era meu sabor favorito. Sabor de nós. O que pareceu uma eternidade foram poucos segundos interrompidos por gritos de feliz ano novo mais altos. Soltei ele, buscando em seu rosto a tão esperada rejeição, mas encontrei o rosto de um Luís sorridente e entregue, o mesmo que me recebeu no dia 25 de dezembro em sua porta. Nos abraçamos.
- Feliz ano novo, Saulo.- ele sussurrou no meu ouvido.
- Feliz ano novo, Luís. Desculpe pelo... eu tô meio bêbado.- No surto do momento, tomei o espumante da mão do José e joguei nas nossas cabeças, esperando que o Luís ficasse puto comigo, mas ele sorriu. Aquele mesmo sorriso largo e branco de horas atrás. E me puxou para mais um beijo. Dessa vez um selinho.
- Obrigado por melhorar minha noite, Aluado.- Ele me deu um beijo na bochecha e eu não sabia me mover mais. Com a garrafa agarrada na minha mão, eu não sabia me mover mais, e senti meu rosto involuntariamente se abrir em um sorriso.
- Que beijão, hein!- João disse quando chegou até mim.
- E aí, como foi?- José perguntou.
Mas meu mundo parou e eu só conseguia assistir o sorriso de resposta do Luís do outro lado da sacada.

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Pisca-pisca
RomansaUma garrafa de vinho e um convite para passar o dia do Natal: foi assim que passei meu 25 de dezembro. Meu vizinho me tira bons suspiros, e eu sou um romântico (emocionado) incorrigível. Será que eu deveria parar de criar expectativas mesmo a gente...