Levantei tarde da cama. Ganhei folga do trabalho e decidi que merecia uma noite de sono que não tivesse hora marcada para acabar, mas graças ao meu relógio biológico eu acordei religiosamente as 6:30. Isso não me impediu de ficar deitado na cama passando pelo feed do Instagram até as 10:30 até eu finalmente ceder aos urros da minha barriga pedindo por algo de comer. Fiz meu café forte, coloquei a quantidade perfeita de café, peguei uma pizza dormida e me sentei no sofá ligando a televisão. Faziam meses que eu não fazia isso, então me deixei voltar aos velhos tempos. Assisti ao jornal das 10 que já estava quase acabando, depois coloquei em um canal que estava passando Crepúsculo e assisti pela milésima vez (e isso não é um exagero), depois futriquei pelos streams para ver se encontrava algo. Um filme lançado recentemente de romance estava disponível, e eu comecei a imaginar que poderia talvez chamar o Luís para uma tarde de filmes.
Mas ele deve estar trabalhando
~José
Cara
Só manda a mensagem
Se ele estiver trabalhando ele vai falar uaiNão sei
~José
Saulo, pelo amor de Deus manda essa mensagemELE DEVE ESTAR TRABALHANDO, JOSÉ
~José
VOCÊ NÃO VAI SABER SE NÃO MANDAR A MENSAGEM SAULOCom esse incentivo por mensagem do José decidi mandar a mensagem. Surpreendentemente, Luís também tinha o dia de folga e aceitou o convite. Alguns minutos depois eu o recebi de pijama e ele trajava algo parecido com um conjunto moletom cinza, e carregava um saco de milho de pipoca e um pote de manteiga. Fizemos a pipoca, nos sentamos no sofá e começamos a ver o filme, inicialmente em silêncio.
- Então - quebrei o silêncio.-, porque você não trabalhou hoje?
- Ah, eu cumpri minha meta de produção da semana e eles me deixaram relaxar hoje. E você?- ele disse, fixando os olhos nos meus.
- Bom, eu trabalhei em um dos feriados e acabei ganhando o dia.- eu disse, fitando incessantemente a TV.
- Já pensou em ir pra Itália?- o filme que estávamos vendo se passava na Itália.
- Eu to tentando aprender italiano no Duolingo para isso, inclusive.- de fato não era uma mentira, mas era uma realidade um pouco distante da minha condição financeira.
- Mas porque a Itália?- o filme agora só servia de plano de fundo, já que eu não conseguia parar de olhar para os grandes olhos escuros do Luís.
- Bom, não sei. Acho um país bonito, a língua é bem sexy, e meio que é um dos berços da arte, então seria um bom lugar.
- Você desenha?- ele perguntou com uma surpresa na voz como se eu tivesse informado exatamente isso.
- Não necessariamente.
- Como assim, Saulo?
Eu me levantei e fui até meu quarto. Peguei meu caderno de desenhos que ficava na primeira gaveta do armário de cabeceira. "Que vergonha mostrar pra um artista meus garranchos", eu pensei, mas estava seguindo o conselho que o José me disse há algum tempo de que eu não tenho nada a perder se eu não tentar, mas também não vou ter nada a ganhar se me abster.
- Bom... esses são meus rabiscos.- eu disse, entregando o caderno para ele.
Ele folheou e encarou cada desenho por uns quarenta segundos antes de passar para o próximo. Ele parou no último que eu tinha feito, um coração anatômico partido por uma flecha. Ele o encarou por um tempo maior, analisando cada traço, passando os dedos suavemente no papel como se tentasse pegar para si aquele órgão.
- Que coisa linda, Saulo... Eu tô... impressionado.
- Eles são bem básicos. Nada de mais.
Ele sorriu suavemente e analisou meu rosto como se buscasse a solução de uma equação impossível.
- Você é cheio de surpresas, né?- ele finalmente disse.
Desviei a minha atenção para o filme por vergonha de encarar aqueles profundos olhos pretos que pareciam querer entender todas as voltas dos meus pensamentos. Assistimos ao filme tecendo teorias sobre o que aconteceria com o casal principal, errando todas miseravelmente.Depois do filme, bebemos uma garrafa de vinho e conversamos sobre divas pop, falamos sobre a situação atual do Brasil, sobre política, sobre desejos de futuro.
- E no mês que vem eu tenho uma viagem de campo para fazer numa cidadezinha do interior.- eu disse.
- Eu também tenho algo parecido, um cliente pediu umas artes sobre uma cidade para uma exposição cultural no fim do ano.
Estranhamente, parecia um pouco com a demanda do escritório, mas não pensei muito nisso e seguimos conversando. Antes que pudéssemos nos dar conta, já eram 3 da manhã e o vinho tinha batido legal. Eu estava extremamente sonolento, assim como ele, mas como era sábado no outro dia, não nos importamos muito. Meu sofá se abria em uma cama, então o puxei para ficar mais confortável e dormimos ali mesmo.
Foi um dia tranquilo e leve, sem a pressão do escritório e sem que eu me afundasse nas redes sociais para passar o tempo. Em dias normais, iria ficar enchendo o saco do José mandando várias mensagens e fotos na cama para fazer ele ficar com inveja de trabalhar enquanto eu estou deitado, mas meu tempo estava depositado em assistir filme com o Luís.
Alguns dias assim eram raros, e eu tendia a guardá-los num lugar especial da minha mente, um cofre onde eu abria e encarava aquelas memórias todos os dias para que elas me dessem força para viver a semana ou o dia. E esse dia tinha sido o que eu coloquei mais seguro: não estava junto com as idas ao boliche com José, nem a coloquei junto da primeira vez que me apaixonei. Ela estava no canto mais claro do cofre, perto da porta. Seria a primeira coisa a ser vista quando esse cofre fosse aberto, e sua importância não era por ser algo com o Luís, por mais que eu tivesse interesse nele. Ela era importando porque foi um momento em que eu me senti numa lupa, analisado nos mínimos detalhes, mas isso foi a melhor coisa que aconteceu comigo esse ano. Não tem como esquecer desse dia.

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Pisca-pisca
RomanceUma garrafa de vinho e um convite para passar o dia do Natal: foi assim que passei meu 25 de dezembro. Meu vizinho me tira bons suspiros, e eu sou um romântico (emocionado) incorrigível. Será que eu deveria parar de criar expectativas mesmo a gente...