Okay, definitivamente esse é um dos piores dias da minha vida. Tive a brilhante ideia de colocar aparelho nos meus dentes e agora estou no ônibus atrasado para a minha primeira consulta com o cirurgião dentista. Eu nunca considerei um problema ter dentes completamente fora do padrão, mas todas as vezes em que me consultei com dentistas, eles me olhavam como se eu fosse um caso raro, exótico, e uma vez fui me questionaram se eu chupava dedo. Confessei que fazia isso quando criança, mas que parei aos sete anos. Então, o médico falou que eu não havia parado de fazer isso mesmo tendo crescido, considerando toda a situação dos meus dentes. Odeio ser taxado de mentiroso e na hora comecei a teimar com ele. Fiquei irritado com aquele dentista, porque, afinal, eu não tinha um motivo para mentir e tampouco ele tinha motivo para não acreditar em mim. Enfim, depois de tantos momentos constrangedores, me senti pressionado a mudar a estética dos meus dentes, apesar de não achá-los feios. No entanto, para continuar o tratamento, eu preciso fazer essas extrações. Quando soube disso, fiquei com vontade de desistir da ideia de ter um aparelho, mas lembrei da longa discussão sobre eu chupar dedo (sei que você pensou em muitas piadas de quinta série agora), e isso me motivou a continuar... pelo menos por enquanto.
Geralmente, um dia antes de ir a algum lugar, eu calculo toda a rota do percurso. Moro distante de quase todos os lugares que preciso frequentar, então é muito necessário que eu tenha essa organização. Porém, há dias e dias, e nesse em específico, eu estava com preguiça de acordar cedo. Tá, pode ser que você esteja achando que sou imprudente, mas eu estava tendo que lidar com a menstruação. Espero que nunca saiba o quanto é horrível ser homem e menstruar, porque nem as mulheres cisgênero se sentem confortáveis nesse momento, quem dirá eu, um pobre homem trans que odeia seu corpo. Enfim, nesse período sinto que sou visitado por um monstro que fica me lembrando o tempo inteiro que nasci com a porra de um corpo que não me pertence. E só um adendo aqui, existem homens trans que conseguem lidar com esse período normalmente e eu invejo muito isso, porque sinto vontade de me deletar do universo sempre que chega esse momento infernal do mês. Nas minhas tentativas de ser uma pessoa mais positiva, sempre digo a mim mesmo que morro e renasço todo mês. Não costuma funcionar muito, mas gosto de fingir que sou otimista.
Como consequência da minha preguiça, acabei não olhando onde ficava o local da clínica e me perdi no bairro assim que desci do ônibus. Eu já estava atrasado, então já não ia fazer muita diferença se eu encontrasse a clínica ou não. É como dizem, se você está no inferno, abrace o capeta, mas nesse caso, acho que até Satanás me abandonou, porque o fato de eu já estar atrasado só me deixou ainda mais desesperado e nervoso. E você deve estar se perguntando: "ele não podia procurar no celular na hora, ou perguntar a alguém o endereço correto?". É, tentei fazer isso, mas também por causa da minha falta de planejamento, meu celular descarregou exatamente nessa hora. Encontrei poucas pessoas na rua naquele horário e todas me falaram que não faziam ideia de onde ficava aquela clínica. O bairro era de gente rica, então eles me jogaram um olhar meio de cima a baixo, bem metidinhos a besta mesmo, quero que tudinho vão se fuder. E assim, existiu um momento em que pensei comigo mesmo: "Ok, o marketing dessa empresa tá péssimo, os próprios moradores do bairro não conhecem a clínica." Finalmente, meu momento de glória foi quando achei uma borracharia com pessoas gentis nela. Lá, eles me deram água e me ajudaram a encontrar a rua. Inclusive, moço da borracharia, se você porventura ler essa merda aqui, saiba que você é meu deus agora e eu venero você. O que aconteceu foi que cheguei à clínica quarenta minutos após o esperado, ai como eu amo a minha vida. Me recuso a contar sobre o processo da cirurgia, porque eu estou tentando convencer meu cérebro a esquecer essa lembrança. De brinde, ganhei uma crise de choro no banheiro feminino, repito, feminino, e uma cicatriz que parou de sangrar só após 3 dias de pós operatório. A única coisa que me alegrou nesse dia foi quando, ao voltar pra casa, me deparei com um senhor cantando mal no ônibus. Ele usava o playback em uma caixinha e eu tinha uma crise de riso cada vez que ele abria a boca, então muito obrigado aí a você também senhorzinho do ônibus, só não deixa o som tão alto na próxima vez porque se eu não estivesse triste o suficiente pra me importar, seu canto teria me irritado de tão alto que tava aquela porra.
Mas bem, eu gostava muito de quando a minha única preocupação era se a menina que eu gostava corresponderia meus sentimentos, ou se minha única amiga da escola faltaria a aula. Adoraria se não tivesse que pensar em todos os riscos que corro ao frequentar o banheiro masculino, adoraria não ter que resolver uma expressão matemática toda vez que quiser sair de casa, adoraria não me sentir tão sozinho e adoraria não ter que me preocupar tanto com tudo... Enfim, não queria crescer, basicamente. Portanto, vou me fingir de positivo aqui e vou dizer pra você que tenho esperança de que tudo vai mudar, e talvez mude mesmo... pra pior. E ah, antes que eu esqueça, meu nome é Lucas, muito prazer.
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Monólogo de Um Adolescente (Trans)tornado
Losowe"A verdade é que... Eu era diferente. Não diferente por causa do meu cabelo bagunçado, meu jeito estranho ou minha precoce rebeldia. Eu apenas não me encaixava em nada... Minha imagem não refletia em lugar algum. Com os garotos, eu brigava. Pelas me...