Nós sapatões meio crentes

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"Oi, meu nome é Júlia"

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"Oi, meu nome é Júlia"... Não, apaga, apaga, é direto demais e você não quer se identificar idiota. "Olá, doce menina"... Doce menina? Sério Júlia? Meu Deus, por que mesmo eu estou fazendo isso? Ah claro, não tenho coragem o suficiente de me declarar pra menina que eu gosto e por isso estou me escondendo atrás de um papel.

Isso foi na sétima série, eu tinha 11 anos e gostava dessa menina chamada Ana e não conseguia de jeito nenhum me declarar pra ela. Ana sempre me elogiou muito e era tão legal comigo, que era difícil saber se era um flerte ou se ela só estava sendo gentil. Meu ego gostava de pensar que ela estava dando em cima de mim, mas minha insegurança preferia a parte que ela me dava um fora, me chamava de lixo e rasgava a carta na minha cara. O grande plano era ser seu "admirador secreto" durante uma semana e depois surgir com um buquê de flores e uma aliança pedindo pra ela ser a "Ana da minha Júlia". É besta, eu sei, mas na época achei hilário. Claro que, infelizmente, o lance do buquê e da aliança só existia na minha cabeça, já que minha família conservadora só me deixava ir à escola porque não estava sob seu controle. Inclusive, resolvi matar aula uma vez e quase morri atropelada, mas é história para os próximos capítulos. Trate de ler até o final.

Ana sempre foi uma incógnita pra mim, eu tinha meu radar de sapatão bem aguçado, mas se tratando dela... Eu nunca conseguia saber. Conheci ela quando eu estava flertando com uma menina na quadra da escola. Eu corri atrás dessa menina mas ela ainda não se sentia pronta pra descobrir o mundo mágico da sapatagem, e foi indo atrás dela que conheci a Ana. Elas eram amigas e sempre estavam juntas. Quando vi a Ana pela primeira vez, pensei: "Ela é tão linda!". Mas minha felicidade sempre acabava quando um amigo delas chegava pra conversar conosco. Ele tinha aquele sorriso de hétero travesso que você sabe que não vale nada, mas que faz muita menina se apaixonar e a Ana parecia feliz quando ele chegava, e isso me deixava com ciúmes. Eu sempre disputei com os meninos na escola por uma vaga no coração das meninas. Isso não mudou muito com a vida adulta, a diferença é que hoje eu disputo com homens brancos, héteros e cisgêneros* por uma vaga de emprego, mesmo.

Fiquei duas semanas nessa incerteza, até que decidi que ia falar pra Ana que eu gostava muito dela, e que se ela quisesse colocar aquela genética europeia dela nas nossas filhas, eu não iria reclamar. Pensei em muitos métodos para confessar meus sentimentos, mas o menos viajado foi escrever uma carta, jogar na mochila dela, e entregar pra Deus. Quando comecei a escrever a carta eu fiquei muito envergonhada com o que eu mesma estava escrevendo e desisti da ideia. Foi aí que eu decidi que falaria tudo pessoalmente. No entanto, quando eu reuni todo pouco de coragem que eu tinha naquela época pra contar pra ela o que eu sentia, descobri que ela tinha namorado. Cheguei da escola naquele dia e chorei um pouco, realmente gostava dela. Mas depois do meu momento bem clipe emo, abri a tv e fui assistir um filme na sessão da tarde. Parece aleatório o que vou dizer agora, mas eu mijei na rede até meus treze anos de idade. Quando eu estava limpando o chão do meu quarto, fiz um coração no chão com a marca da água e no meio dele escrevi: "A+J". Fiquei por uns minutos admirando minha obra de arte que fiz para minha amada. Apesar de já ter superado a Ana, nunca vou superar as coisas que eu produzia com esse sentimento.

Mais tarde, minha mãe me levou pra igreja. Eu nunca gostei de ir a igreja, o barulho me incomodava um pouco, além de precisar ouvir sempre que meu lugar era no inferno, que homens eram superiores, e o pior: que rock é do diabo!! Você sabe o quanto é revoltante pra uma adolescente no auge de sua fase hardcore, ouvir que rock é do tinhoso? Péssimo! Bom, apesar de tudo isso, a igreja tinha sua mágica, um exemplo disso era o sorriso que minha mãe sempre esboçava quando eu ia cantar no púlpito do templo. Eu amava cantar e fazer apresentações artísticas na igreja, mesmo ouvindo aquelas frases preconceituosas constantemente, eu não fazia ideia de que as pessoas da minha igreja detestavam a comunidade lgbt+. Naquele tempo, achava que era uma questão de: "olha gente, não pode praticar o rebuceteio, casar com uma menina que você só conhece a um dia e colocar Cássia Eller acima de Deus, ok? De resto tá liberado." Mas o buraco era bem mais embaixo, e eu cresci acreditando que tava tudo bem ser diferente naquele meio. Esse foi o meu erro.

*Cisgêneros são pessoas que se identificam com o gênero que lhe foi posto no ato do nascimento

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*Cisgêneros são pessoas que se identificam com o gênero que lhe foi posto no ato do nascimento. Exemplificando, se você nasce homem e se identifica dessa forma, você é cisgênero. Já se você é posto como homem mas, na realidade, é uma mulher, você é transgênero, uma mulher transgênero.

Monólogo de Um Adolescente (Trans)tornadoOnde histórias criam vida. Descubra agora