Janeiro.
Foi de tudo. E foi algo, como uma porta sólida. Seu frio selava a cidade
numa cápsula cinzenta. Janeiro foi momentos, e janeiro foi um ano. Janeiro fez
chover os instantes e congelou-os na sua memória: a mulher que ela viu
consultando ansiosamente, à luz de um fósforo, os nomes em uma entrada
escura, o sujeito que rabiscou um recado e entregou-o a seu amigo antes de se
separarem na calçada, o sujeito que correu um quarteirão atrás de um ônibus e
pegou-o. De cada gesto humano parecia emanar uma magia. Janeiro era um
mês de duas faces, chocalhando como guizos de bufão, estalando como crosta de
neve, puro como qualquer começo, taciturno como um velho, misteriosamente
familiar e ainda assim desconhecido, como uma palavra que quase se define,
mas que não se chega a definir.
Um rapaz chamado Red Malone e um carpinteiro calvo trabalhavam com
ela no cenário de Small Rain. O sr. Donohue gostou muito. Ele disse que tinha
convidado um certo sr. Baltin para vir ver o trabalho dela. O sr. Baltin era
formado por uma academia russa e já fizera alguns cenários para teatros de
Nova York. Therese nunca ouvira falar dele. Ela tentou arranjar com o sr.
Donohue uma entrevista com Myron Blanchard ou Ivor Harkevy, mas o sr.
Donohue nunca prometia nada. Não podia, achava Therese.
O sr. Baltin veio certa tarde, um homem alto, curvado, de chapéu preto,
num sobretudo surrado, que olhou atentamente para o trabalho que ela lhe
mostrou. Ela trouxera apenas três ou quatro maquetes para o teatro, suas
melhores. O sr. Baltin lhe falou sobre uma peça cuja produção começaria dentro
de mais ou menos seis semanas. Ele teria prazer em recomendá-la como
assistente, e Therese disse que isso funcionaria muito bem, já que ela estaria fora
durante esse período, de todo modo. Tudo estava dando muito certo naqueles
últimos dias. O sr. Andronich prometera-lhe um trabalho de duas semanas na
Filadélfia no meio de fevereiro, que seria mais ou menos a época em que ela
estaria de volta da viagem com Carol. Therese anotou o nome e o endereço do
conhecido do sr. Baltin.
– Ele está procurando alguém agora, por isso ligue para ele no início da
semana – disse o sr. Baltin. – Será apenas um trabalho de assistente, mas seu
assistente anterior, que foi aluno meu, está agora trabalhando com Harkevy.
– Ah. O senhor acha que conseguiria, ou ele conseguiria... uma entrevista
com Harkevy para mim?
– Nada mais fácil. Basta ligar para o ateliê de Harkevy e pedir para falar
com Charles. Charles Winant. Diga a ele que falou comigo. Vejamos – ligue para
ele na sexta. Na sexta de tarde, por volta das três.
– Está bem. Obrigada.
Faltava ainda uma semana inteira para a próxima sexta. Harkevy não era
inacessível, ouvira falar Therese, mas tinha a reputação de jamais agendar
compromissos e muito menos de cumpri-los se os agendasse, porque era
ocupadíssimo. Mas talvez o sr. Baltin soubesse.
– E não se esqueça de ligar para Kettering – disse o sr. Baltin ao partir.
Therese olhou de novo o nome que ele lhe dera: Adolph Kettering,
Investimentos Dramáticos, Inc., em um endereço particular.
– Vou ligar para ele na segunda de manhã. Muito obrigada.
Aquele era o dia, um sábado, em que ela ia se encontrar com Richard no
Palermo, depois do trabalho. Faltavam onze dias para a data em que ela e Carol
planejavam partir. Ela viu Phil junto com Richard no bar.
– Oi, como vai o velho Cat? – perguntou Phil, pegando um banquinho para
ela. – Trabalhando nos sábados também?
– O elenco não trabalhou. Só meu departamento – disse ela.
– Quando é a estréia?
– Dia 21.
– Olha – disse Richard. E apontou para uma mancha de tinta verde-escura
na sua saia.
– Eu sei. Foi há dias.
– O que você quer beber? – perguntou-lhe Phil.
– Não sei. Talvez uma cerveja, obrigada – Richard dera as costas para
Phil, que estava do outro lado dele, e ela intuiu algum mal-estar entre eles. –
Pintou alguma coisa hoje? – perguntou ela a Richard.
A boca de Richard estava com ambos os cantos virados para baixo.
– Tive que dar uma mãozinha para um motorista numa fria. Acabou a gasolina no meio de Long Island.
– Ah, que terrível! Talvez você prefira pintar a ir a algum canto amanhã –
eles haviam falado em ir até Hoboken no dia seguinte, só para passearem e
comerem caranguejo no Clam House. Mas Carol estaria na cidade amanhã e
prometera ligar para ela.
– Pintarei, se você posar para mim – disse Richard.
Therese hesitou, constrangida:
– Eu não ando a fim de posar ultimamente.
– Está certo. Deixa para lá – ele sorriu. – Mas como poderei pintá-la se
você nunca posa?
– Por que não faz isso de cabeça?
Phil esticou a mão e segurou o fundo do copo dela.
– Não beba isso. Beba algo melhor. Deixe que eu bebo.
– Está bem. Vou experimentar um uísque com água.
Phil estava agora do outro lado dela. Parecia alegre, mas com ligeiras
olheiras. Durante a última semana, andara escrevendo uma peça, em um ânimo
taciturno. Lera algumas cenas em voz alta na sua festa de reveillon. Phil
chamava-a uma extensão da Metamorfose, de Kafka. Ela fizera um esboço
rápido de um cenário na manhã de Ano-Novo e fora até a casa dele mostrá-lo. E
de repente lhe ocorreu que esse era o problema de Richard.
– Terry, eu gostaria que você fizesse uma maquete daquele desenho que
me mostrou. Queria um cenário que acompanhasse o texto – Phil empurrou o
uísque com água na direção dela e inclinou-se sobre o bar junto a ela.
– Talvez eu faça – disse Therese. – Você vai mesmo tentar produzi-la?
– Por que não? – os olhos escuros de Phil lhe faziam um desafio
sobreposto a seu sorriso. Ele estalou os dedos para o barman: – Conta.
– Eu pago – disse Richard.
– Não, não. Essa é minha – Phil segurava sua velha carteira preta.
Sua peça jamais será produzida, pensou Therese, talvez nem seja
terminada, porque o ânimo de Phil é instável.
– Eu vou puxando – disse Phil. – Apareça em breve, Terry. Até, Rich.
Ela observou-o se afastar e subir a pequena escada da frente, mais
esfarrapado do que ela jamais o vira, nas suas sandálias e casaco de pêlo de
camelo puído, e no entanto com um charme displicente derivado do próprio aspecto descuidado. Como alguém andando pela sua casa no seu velho roupão
predileto, pensou Therese. Ela devolveu o aceno, da janela da frente.
– Ouvi dizer que você levou sanduíches e cerveja para Phil no Ano-Novo
– disse Richard.
– Sim. Ele ligou para mim e disse que estava de ressaca.
– Por que você não falou?
– Eu me esqueci, acho. Não era importante.
– Não era importante. Se você – a mão rígida de Richard gesticulou lenta,
irremediavelmente – passou metade do dia no apartamento do cara, levando
sanduíches e cerveja para ele? Não lhe ocorreu que eu também poderia querer
sanduíches?
– Se quisesse, muita gente poderia trazê-los para você. A gente comeu e
bebeu tudo que havia na casa de Phil. Lembra?
Richard balançou sua longa cabeça, ainda a sorrir com aquele sorriso
envergonhado, dirigido para baixo.
– E você ficou sozinha com ele. Só vocês dois.
– Ah, Richard – ela se lembrava, e tinha tão pouca importância. Dannie
não voltara de Connecticut naquele dia. Passara o reveillon na casa de um de
seus professores. Ela esperara que Dannie tivesse chegado naquela tarde na casa
de Phil, mas Richard provavelmente jamais pensaria nisso, jamais pensaria que
ela gostava muito mais de Dannie que de Phil.
– Se qualquer outra garota fizesse isso, eu desconfiaria de alguma coisa –
continuou Richard.
– Acho que você está sendo bobo.
– Acho que você está sendo ingênua.
Richard olhava para ela com um olhar de pedra, aborrecido, e Therese
pensou que, com certeza, seu ressentimento não poderia ser apenas por aquilo.
Ele se ofendia por ela não ser, nem jamais poder ser aquilo que ele gostaria que
ela fosse, uma garota que o amasse de paixão e que adorasse ir para a Europa
com ele. Uma garota como ela, com suas ambições, mas uma garota que o
adorasse.
– Você não faz o tipo de Phil, sabe – disse ele.
– Quem disse que eu fazia? Phil?
– Aquele bobão, aquele diletante de meia-tigela – murmurou Richard. – E ele teve a audácia de se manifestar hoje à noite e dizer que você não liga para
mim merda nenhuma.
– Ele não tem nenhum direito de dizer isso. Não falo de você com ele.
– Ah, essa é uma bela resposta. Querendo dizer que, se falasse, ele saberia
que você não liga a mínima, não é? – Richard falou baixo, mas sua voz tremia de
raiva.
– Por que Phil de repente resolveu te incomodar? – perguntou ela.
– Isso não é a questão!
– Qual é a questão? – perguntou ela, impaciente.
– Ah, Terry, vamos parar com isso.
– Você não consegue encontrar questão alguma – disse ela, mas vendo
Richard se afastar e esfregar os cotovelos no balcão, quase como se se
contorcesse fisicamente ao ouvir suas palavras, ela sentiu uma súbita pena dele.
Não era hoje, nem a semana passada que o amargurava, mas toda a inutilidade
passada e futura de seus sentimentos por ela.
Richard mergulhou o cigarro no cinzeiro do bar.
– O que quer fazer esta noite? – perguntou.
Conte a ele sobre a viagem com Carol, pensou ela. Por duas vezes ela
pensara em contar-lhe e adiara.
– Você quer fazer alguma coisa? – ela frisou as duas últimas palavras.
– Claro – disse ele melancolicamente. – Que tal a gente jantar, depois
ligar para Sam e Joan? Talvez a gente possa esticar as canelas e ir vê-los esta
noite.
– Está bem – que coisa detestável. Duas das pessoas mais chatas que ela
jamais conhecera, um vendedor de sapatos e uma secretária, um casal feliz na
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th Street West, e ela sabia que Richard pretendia mostrar a vida deles como
exemplo para ela, para lembrar-lhe que um dia eles poderiam viver juntos da
mesma maneira. Ela detestava aquilo, e se fosse em qualquer outra noite, ela
teria protestado, mas a pena que sentia de Richard perdurava, levando a reboque
uma onda amorfa de culpa e de necessidade de reparação. De repente, ela
lembrou de um piquenique que havia feito no verão passado, ao lado da estrada
perto de Tarry town, lembrou com exatidão Richard reclinado na grama,
atacando lentamente a rolha da garrafa de vinho com seu canivete, enquanto
falavam sobre – o quê? Mas ela lembrava aquele momento de satisfação, aquela convicção de terem compartilhado algo maravilhosamente real, raro, naquele
dia, e então se perguntou para onde fora aquilo, em que se baseara. Porque no
momento presente até a longa e insípida figura dele a seu lado a oprimia com seu
peso. Ela engoliu seu ressentimento, que apenas virou um peso dentro dela, como
algo substancial. Olhou para as figuras atarracadas dos dois operários italianos
em pé no balcão e para as duas garotas na extremidade do bar, que ela já notara
antes; só que agora, ao irem embora, ela percebeu que usavam calças. Uma
tinha o cabelo cortado como um rapaz. Therese olhou para outro lado, ciente de
que as evitara, que evitara ser vista olhando para elas.
– Quer comer aqui? Já está com fome? – perguntou Richard.
– Não. Vamos a um outro lugar qualquer.
Por isso saíram e caminharam rumo ao norte, na vaga direção onde
moravam Sam e Joan.
Therese ensaiou as primeiras palavras até perderem todo o sentido.
– Lembra da sra. Aird, a mulher que você conheceu na minha casa
naquele dia?
– Com certeza.
– Ela me convidou para fazer uma viagem com ela, uma viagem ao
Oeste, de carro, por umas duas semanas mais ou menos. Eu gostaria de ir.
– Oeste? Califórnia? – disse surpreso Richard. – Por quê?
– Por quê?
– Sim... você a conhece tão bem assim?
– Estive com ela algumas vezes.
– Ah, bem, você não falou nada – Richard ia caminhando com as mãos
balançando dos lados, olhando para ela. – Só vocês duas?
– Sim.
– Quando vai partir?
– Por volta do dia 18.
– Deste mês? Então você não poderá ver seu espetáculo.
Ela sacudiu a cabeça.
– Não acho que a perda seja tão grande assim.
– Quer dizer que está resolvido.
– Sim.
Ele ficou calado um momento.
– Que tipo de pessoa ela é? Ela não bebe, ou faz nada desse gênero, faz?
– Não – Therese sorriu. – Ela dá a impressão de quem bebe?
– Não. Acho ela muito bonita, na verdade. É extremamente espantoso, só
isso.
– Por quê?
– É tão raro você tomar uma resolução sobre qualquer coisa.
Provavelmente ainda mudará de idéia.
– Acho que não.
– Talvez eu pudesse vê-la de novo junto com você. Por que não
providencia isto?
– Ela disse que viria à cidade amanhã. Não sei o tempo de que ela dispõe
– ou se realmente vai ligar ou não.
Richard não prosseguiu, nem Therese. Não tornaram a mencionar Carol
naquela noite.
Richard passou a manhã de domingo pintando e foi ao apartamento de
Therese por volta das duas horas. Estava lá quando Carol ligou, pouco depois.
Therese disse que Richard estava lá com ela, e Carol falou:
– Traga ele também.
Carol disse que estava perto do Plaza e que podiam se encontrar lá, na
Sala das Palmeiras.
Meia hora depois, Therese via Carol levantar os olhos para eles de uma
mesa perto do centro do salão, e, quase como da primeira vez, como o eco de
um tremendo impacto, Therese sentiu um abalo diante da visão dela. Carol
trajava o mesmo conjunto preto com o lenço verde e dourado que usara no dia
do almoço. Só que agora Carol deu mais atenção a Richard do que a ela.
Os três conversaram fiado, e Therese, ao ver a tranqüilidade nos olhos
cinzentos de Carol, que se dirigiram a ela uma única vez, sentiu uma espécie de
decepção. Richard fizera tudo para encontrá-la, mas Therese achou que isso se
devia menos à curiosidade do que ao fato dele não ter nada para fazer. Ela
percebeu Richard olhando para as mãos de Carol, com as unhas bem tratadas e
pintadas de vermelho-vivo, olhando o anel com a safira verde transparente e a
aliança na outra mão. Não dava para Richard dizer que eram mãos inúteis,
preguiçosas, a despeito das unhas compridas. As mãos de Carol eram fortes, de
uma economia de gestos quando se mexiam. Sua voz se sobrepunha ao murmúrio monocórdio das demais vozes em volta deles, falando sobre coisa
alguma com Richard, e uma vez ela riu.
Carol olhou para ela:
– Você contou a Richard que a gente está pensando em fazer uma
viagem? – perguntou.
– Sim. Na noite passada.
– Para o Oeste? – perguntou Richard.
– Eu gostaria de subir rumo ao Noroeste. Depende das estradas.
E Therese ficou repentinamente impaciente. Por que ficar ali sentados
numa verdadeira conferência sobre o assunto? Agora falavam sobre a
temperatura e o estado de Washington.
– Washington é meu estado de origem – disse Carol. – Praticamente.
Então, alguns momentos depois, Carol perguntou se alguém gostaria de
caminhar no parque. Richard pagou pela cerveja e pelo café deles, tirando uma
de um emaranhado de notas e de moedas que estofavam um bolso de suas
calças. Que indiferença demonstrara ele, afinal, por Carol, pensou Therese. Ela
achava que ele não a enxergava, como às vezes não conseguira distinguir figuras
em formações rochosas ou de nuvens, quando ela tentara chamar sua atenção
para as mesmas. Ele agora olhava para a mesa, a leve linha despreocupada de
sua boca sorrindo pela metade quando ele se endireitou e passou rápido a mão
pelo cabelo.
Caminharam da entrada do parque na 59
th Street em direção ao zoológico
e passaram por ele flanando. Continuaram a andar, passando sob a primeira
ponte sobre o caminho, onde este fazia uma curva e o verdadeiro parque
começava. O ar estava frio e parado, o céu, um pouco nublado, e Therese sentiu
uma imobilidade em tudo, uma quietude sem vida até mesmo nas suas próprias
figuras que se moviam lentamente.
– Que tal procurar uns amendoins? – perguntou Richard.
Carol estava inclinada na beira do caminho, oferecendo seus dedos ao
esquilo.
– Eu tenho algo – dizia ela suavemente, e o esquilo se assustou com sua
voz, mas se adiantou de novo, agarrou os dedos dela com uma pressão nervosa,
enterrou os dentes em algo e saiu correndo. Carol se endireitou, sorrindo: –
Sobrou algo no meu bolso de hoje de manhã.– Você dá comida para os esquilos lá onde mora? – perguntou Richard.
– Para os esquilos e as tâmias – respondeu Carol.
Que coisa chata a conversa deles, pensou Therese.
Então sentaram em um banco e fumaram um cigarro, e Therese,
contemplando um sol diminuto que acabou enviando seus raios laranja até os
ramos pretos descarnados de uma árvore, desejou que a noite já tivesse caído e
ela estivesse sozinha com Carol. Começaram a caminhar de volta. Se Carol
tivesse de ir para casa agora, pensou Therese, ela faria uma violência qualquer.
Como pular da ponte da 59
th Street. Ou tomar os três comprimidos de benzedrina
que Richard lhe dera na semana passada.
– Vocês gostariam de tomar chá em um lugar qualquer? – perguntou
Carol, ao se aproximarem novamente do zoológico. – Que tal aquele lugar russo
perto do Carnegie Hall?
– O Rumpelmayer’s fica bem aqui – disse Richard. – Você gosta do
Rumpelmayer’s?
Therese deu um suspiro. E Carol pareceu hesitar. Mas foram. Therese já
fora uma vez com Angelo, lembrou-se. Mas não gostou do lugar. Suas luzes muito
brilhantes lhe davam uma sensação de nudez, e era irritante não saber se você
olhava para uma pessoa de verdade ou para um reflexo no espelho.
– Não, não quero nada disso, obrigada – disse Carol, sacudindo a cabeça
diante da grande bandeja de salgadinhos que a garçonete segurava.
Mas Richard escolheu algo, dois salgadinhos, embora Therese declinasse.
– De que é isso, no caso de eu mudar de idéia? – perguntou-lhe ela, e
Richard piscou o olho. Suas unhas estavam sujas de novo, reparou ela.
Richard perguntou a Carol qual o carro que ela tinha, e eles começaram a
debater os méritos de vários fabricantes de automóveis. Therese observou Carol
a olhar para as mesas diante dela. Ela também não gosta daqui, pensou Therese.
Therese olhou fixamente para um homem no espelho situado obliquamente atrás
de Carol. Suas costas davam para Therese, e ele se inclinou para frente, falando
animadamente para uma mulher, sacudindo a mão esquerda aberta à guisa de
ênfase. Ela olhou para a mulher magra, de meia-idade, com quem ele falava e
que lhe respondia, pensando se a aura de familiaridade em torno dele era real ou
uma ilusão, como o espelho, até que uma memória, frágil como uma bolha,
ascendeu na sua consciência e arrebentou na superfície. Era Harge.
Therese olhou de relance para Carol, mas se Carol o notara, pensou ela,
não perceberia que ele estava no espelho atrás dela. Um momento depois,
Therese olhou por cima de seu ombro e viu o perfil de Harge, muito parecido
com uma das imagens que ela lembrava da casa – o nariz curto e alto, a parte de
baixo do rosto cheia, o topete de cabelos louros acima da fímbria natural do
cabelo. Carol certamente o vira, a apenas três mesas à sua esquerda.
Carol olhou de Richard para Therese.
– É – disse-lhe, sorrindo um pouco, e voltou para Richard, continuando sua
conversa. Seu jeito era igual ao de antes, pensou Therese, nada diferente.
Therese olhou para a mulher com Harge. Não era jovem, nem muito atraente.
Podia ser uma de suas parentes.
Então Therese viu Carol esmagar um cigarro longo. Richard parara de
falar. Estavam prontos para ir embora. Therese estava olhando para Harge no
momento em que ele viu Carol. Depois de vê-la pela primeira vez, seus olhos
quase se fecharam, como se tivesse que envesgá-los para acreditar, e depois ele
disse algo para sua acompanhante, levantou-se e veio até ela.
– Carol – disse Harge.
– Olá, Harge – ela se virou para Therese e Richard. – Vocês me dão
licença um minuto?
Observando da porta onde ficou com Richard, Therese tentou perceber
tudo, ver além do orgulho e da agressividade na figura ansiosa de Harge,
inclinada para frente, que não chegava à altura da parte de cima do chapéu de
Carol, ver além da aquiescência dos balançares de cabeça de Carol, enquanto ele
falava, conjeturar não sobre aquilo que falavam agora, mas sobre o que
disseram um ao outro cinco anos atrás, três anos atrás, naquele dia da foto no
barco a remo. Carol já o amara, e isso era duro de lembrar.
– Será que podemos prosseguir sozinhos agora, Terry ? – perguntou-lhe
Richard.
Therese viu Carol se despedir da mulher na mesa de Harge com um
aceno da cabeça, em seguida se afastar de Harge. Harge olhou além de Carol,
para ela e Richard, e, sem aparentemente reconhecê-la, voltou para sua mesa.
– Desculpem – disse Carol ao se juntar a eles.
Na calçada, Therese chamou Richard a um canto e disse:
– Vou me despedir de você, Richard. Carol quer que eu a acompanhe numa visita a uma amiga esta noite.
– Ah – Richard franziu a testa –, estou com os ingressos do concerto para
esta noite, sabe.
Therese se lembrou de repente.
– Do Alex. Eu me esqueci. Desculpe.
Ele disse, abatido:
– Não importa.
Não era importante. O amigo de Richard, Alex, ia acompanhar alguém
em um concerto de violino e dera a Richard os ingressos, lembrou ela, há várias
semanas.
– Você prefere vê-la que a mim, não é? – perguntou ele.
Therese viu que Carol procurava um táxi. Carol abandonaria os dois
dentro de instantes.
– Você devia ter falado sobre o concerto esta manhã, Richard, pelo menos
me lembrado.
– Aquele era o marido dela? – os olhos de Richard se estreitaram sob sua
testa franzida. – O que é, Terry ?
– O que é o quê? – disse ela. – Eu não conheço o marido dela.
Richard esperou um momento, em seguida a censura se desfez no seu
olhar. Ele sorriu, como se concordasse com o fato de ter exagerado:
– Desculpe. Eu simplesmente tomei como fato consumado que te veria
esta noite – ele caminhou até Carol: – Boa noite – disse.
Ele deu a impressão que ia embora sozinho, e Carol disse:
– Vocês estão indo para o centro? Talvez eu possa lhes dar uma carona.
– Eu vou a pé, obrigado.
– Achei que vocês dois tivessem um compromisso – disse Carol para
Therese.
Therese viu que Richard se demorava e foi andando até Carol e disse, fora
do alcance de seu ouvido:
– Não é importante. Prefiro ficar com você.
Um táxi encostara ao lado de Carol. Carol segurou a maçaneta.
– Bem, nosso compromisso também não é tão importante assim, então
porque você não sai com Richard esta noite?
Therese olhou para Richard e viu que ele escutara.
– Até logo, Therese – disse Carol.
– Boa noite – gritou Richard.
– Boa noite – disse Therese, e viu Carol bater a porta do táxi depois de
entrar.
– Então... – disse Richard.
Therese virou-se para ele. Ela não ia ao concerto, nem faria violência
nenhuma, ela sabia, nada mais violento do que caminhar depressa para casa e se
pôr a trabalhar no cenário que queria acabar até terça, para Harkevy. Ela pôde
pressentir a noite inteira que teria pela frente, com um fatalismo meio sombrio e
meio desafiador, no segundo que Richard levou para caminhar até ela.
– Mesmo assim não quero ir ao concerto – disse ela.
Para espanto seu, Richard recuou e disse, zangado:
– Então está bem, não vá! – e se afastou.
Ele desceu a 59
th Street rumo oeste na sua maneira de andar solta, torta,
que projetava seu ombro direito diante do outro, com as mãos balançando em
um ritmo desencontrado, e ela seria capaz de perceber, só pelo seu caminhar,
que ele estava com raiva. E sumiu de vista em um instante. A rejeição por parte
de Kettering na segunda passada lampejou na sua cabeça. Ela fitou a escuridão
em que Richard sumira. Não se sentia culpada por hoje à noite. Era algo
diferente. Ela tinha inveja dele. Tinha inveja de sua fé de que sempre haveria
um lugar, um lar, um trabalho, alguém para ele. Ela o invejava por esta atitude.
Quase se sentia magoada por isso.
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Carol
RomanceTherese Belivet tem um emprego entediante em uma loja de departamentos. Um dia, ela conhece Carol, uma elegante e misteriosa cliente. Rapidamente, as duas mulheres desenvolvem um vínculo amoroso que terá consequências sérias.