Capítulo 13

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Richard começou.
– Por que você gosta tanto dela?
Era uma noite em que ela desmarcara um compromisso com Richard
contando com a escassa chance de Carol aparecer. Carol não viera, e, em vez
dela, viera Richard. Agora, às onze e dez, na enorme lanchonete de paredes rosa
em Lexington Avenue, ela estava prestes a começar, mas Richard se adiantou a
ela.
– Gosto de estar com ela, gosto de conversar com ela. Gosto de qualquer
pessoa com quem eu possa conversar – as frases de alguma carta que ela
escrevera para Carol e jamais postara passavam pela sua cabeça como se em
resposta a Richard. Sinto que estou de pé num deserto com as mãos estendidas, e
você chove torrencialmente sobre mim.
– Você está é com uma enorme paixonite por ela – proclamou Richard,
didático e magoado.
Therese respirou fundo. Deveria ser simples e dizer sim, ou procurar
explicações? O que poderia ele jamais entender, mesmo se ela usasse um milhão
de palavras para explicar?
– Ela sabe? É claro que sabe – Richard franziu a testa e tragou seu cigarro.
– Você não acha uma bobeira danada? É como essas paixonites que as colegiais
têm.
– Você não compreende – disse ela. Ela se sentia tão segura dela mesma.
Eu lhe pentearei como música enredada nas copas de todas as árvores da
floresta...
– O que há para compreender? Mas ela compreende. Ela não devia te dar
corda. Não devia brincar assim. Não é justo com você.
– Não é justo comigo?
– O que ela está fazendo, se divertindo à sua custa? Aí chega um dia que
ela se cansa de você e te dá um chute.
Me dar um chute, pensou ela. Chutar para fora ou para dentro? Como é
que se chuta uma emoção? Ela ficou zangada, mas não queria discutir. Não disse nada.
– Você está entorpecida!
– Estou plenamente acordada. Nunca me senti tão desperta – ela pegou a
faca de comer e esfregou seu polegar para lá e para cá na saliência da base da
lâmina. – Por que não me deixa em paz?
Ele franziu a testa.
– Te deixar em paz?
– É.
– Você quer dizer, a respeito da Europa também?
– Sim – disse ela.
– Escuta, Terry – Richard se retorceu na cadeira e se inclinou para frente,
hesitou, em seguida pegou outro cigarro, que acendeu a contragosto, jogando o
fósforo no chão. – Você está numa espécie de transe! É pior...
– Só porque eu não quero discutir com você?
– É pior do que estar perdidamente apaixonado, porque é tão absurdo.
Você não compreende isso?
Não, ela não compreendia uma palavra.
– Mas você vai superar isso dentro de uma semana. Eu espero. Deus do
céu! – ele se contorceu de novo. – E dizer, dizer que por um instante você quer
praticamente me dar o fora por causa de uma paixonite boba!
– Eu não disse isso. Foi você quem disse – ela devolveu o seu olhar, olhou
para seu rosto rígido que começava a se avermelhar no meio de suas faces
achatadas. – Mas por que motivo haveria eu de querer estar com você se tudo
que faz é discutir sobre isso?
Ele se recostou.
– Na quarta, no sábado que vem, você já não vai mais se sentir assim, de
modo algum. Você a conhece não faz nem três semanas.
Ela olhou para mais longe, para as mesas de comida, onde as pessoas
avançavam lentamente, escolhendo isso ou aquilo, descendo até a curva no
balcão onde se dispersavam.
– Para todos os efeitos a gente pode se despedir – disse ela –, porque
nenhum de nós jamais será diferente do que é neste instante.
– Therese, você parece uma pessoa que ficou tão maluca que acha que
tem mais juízo do que nunca!
– Ah, vamos parar com isso!
A mão de Richard com os nós dos dedos incrustados na carne branca
sardenta, estava fechada em cima da mesa, imóvel, porém a imagem de mão
que dera batidas para frisar algum argumento inaudível e ineficaz.
– Vou te dizer uma coisa, acho que sua amiga sabe o que faz. Acho que
ela está cometendo um crime contra você. Tenho vontade de denunciá-la para
alguém, mas o problema é que você não é mais criança. Só que age como uma.
– Por que você dá tanta importância a isso? – perguntou ela. – Está
praticamente fora de si.
– E você dá tanta importância que quer me dar um fora! O que sabe a
respeito dela?
– O que sabe você a respeito dela?
– Ela já te deu cantadas?
– Meu Deus! – disse Therese. Ela tinha vontade de dizê-lo uma dezena de
vezes. Resumia tudo, sua prisão no momento, ali, ainda. – Você não compreende
– mas ele compreendia, e por isso estava zangado. Mas compreenderia ele que
ela teria os mesmos sentimentos se Carol jamais a tivesse tocado? Sim, e se Carol
jamais tivesse falado com ela depois da breve conversa sobre a valise de boneca
na loja. Se Carol, na verdade, jamais tivesse falado com ela, pois tudo
acontecera naquele instante em que vira Carol no meio do piso, olhando para ela.
Em seguida, a consciência de que tanta coisa acontecera depois daquele encontro
fez com que subitamente se sentisse incrivelmente feliz. Era tão fácil haver um
encontro entre um homem e uma mulher, encontrar alguém que servisse, mas
que ela tivesse encontrado Carol... – Acho que eu te compreendo melhor do que
você me compreende. Você também não quer me ver de novo, porque você
mesmo disse que eu já não sou a mesma pessoa. Se continuarmos a nos ver, a
coisa só vai ficar cada vez mais e mais parecida com isso.
– Terry, esqueça por um instante que eu jamais disse que eu queria que
você me amasse, ou que eu te amo. É você como pessoa, quero dizer. Gosto de
você. Eu gostaria...
– Eu às vezes fico pensando porque você acha que gosta de mim, ou
gostou de mim. Porque nem chegou a me conhecer.
– Você não conhece você mesma.
– Conheço sim, e conheço você. Um dia você vai abandonar a pintura, e eu com ela. Do mesmo modo que você já abandonou tudo que jamais começou,
ao que eu saiba. O negócio da lavagem a seco ou a revenda de carros usados...
– Isso não é verdade – disse Richard, emburrado.
– Mas por que você acha que gosta de mim? Porque eu também pinto um
pouquinho e a gente pode conversar sobre isso? Sou uma namorada tão ineficaz
para você quanto a pintura como teu meio de vida. – Ela hesitou um instante, em
seguida desabafou o restante: – Aliás, você conhece arte o suficiente para saber
que jamais dará um bom pintor. Você é como um menino pequeno fazendo
gazeta o máximo que pode, mas sabendo o tempo todo o que deve fazer e o que
acabará fazendo, trabalhando para seu pai.
Os olhos azuis de Richard de repente se tornaram frios. A linha de sua
boca se encurtara e ficara muito reta agora, o lábio superior fino virando-se
ligeiramente.
– Tudo isso não vem bem ao caso agora, não é?
– Olha... sim. Faz parte de você ficar se agarrando a algo quando sabe que
não adianta, e, quando se convencer, vai acabar largando.
– Não largarei não!
– Richard, não tem sentido...
– Você vai mudar de idéia, você sabe.
Isso ela compreendia. Era como uma canção que ele não parava de
cantar para ela.
Uma semana depois, Richard estava na sala dela com a mesma expressão
de raiva obstinada no rosto, falando no mesmo tom. Ele ligara inusitadamente às
três da tarde e insistira em vê-la por um instante. Ela estava fazendo a mala para
levar para a casa de Carol durante o fim de semana. Se ela não estivesse
arrumando a mala para ir à casa de Carol, o ânimo de Richard poderia ser outro,
pensou ela, porque ela o vira três vezes na semana que passara, e ele nunca fora
mais agradável, nunca tivera tanta consideração.
– Você não pode simplesmente me dar ordens de sair de sua vida – disse
ele, estendendo seus longos braços, mas havia um tom de solidão nisso, como se
ele já tivesse começado a trilhar o caminho para longe dela. – O que me magoa
de verdade é que você age como se eu não significasse nada, fosse totamente
inútil. Não é justo comigo, Terry. Assim não consigo competir!
Não, pensou ela, claro que era impossível. – Não tenho nada a reclamar de você – disse ela. – Você que optou por
reclamar de Carol. Ela não tomou nada que fosse seu, porque não era seu desde
o início. Mas se você não consegue continuar me vendo... – ela parou, sabendo
que ele conseguiria e provavelmente continuaria a vê-la.
– Que raciocínio – disse ele, esfregando a parte de trás da mão no olho.
Therese olhava para ele, presa de uma idéia que acabara de lhe ocorrer,
que de repente percebe ser um fato. Por que não lhe ocorrera na noite do teatro,
dias atrás? Ela poderia tê-lo percebido por uma centena de gestos, palavras,
olhares, naquela semana passada. Mas lembrava especialmente da noite do
teatro – ele a surpreendera com entradas para algo que ela queria ver
especialmente –, a maneira como segurara sua mão naquela noite, e sua voz no
telefone que simplesmente não mandava que ela o encontrasse aqui ou ali, mas
perguntava delicadamente se ela podia. Ela não gostara disso. Não era uma
manifestação de afeto, mas, pelo contrário, uma maneira de se insinuar, de
preparar, de certo modo, as perguntas inopinadas que ele lhe fizera tão
casualmente naquela noite:
– O que você quer dizer quando diz que gosta dela? Você quer ir para
cama com ela?
Therese respondera:
– Você acha que eu te contaria se quisesse? – enquanto uma rápida
seqüência de emoções, humilhação, mágoa, ódio a tornara muda, quase
impossibilitada de continuar caminhando a seu lado. E ao olhá-lo de relance, o
vira olhar para ela com aquele sorriso vazio e adocicado que, em retrospecto,
agora parecia cruel e doentio. E seu caráter doentio lhe teria talvez escapado,
pensou ela, se não fosse pelo fato de Richard andar tentando tão abertamente
convencê-la de que ela era doente.
Therese se virou e jogou dentro da sacola a escova de dentes e a escova
de cabelos, então lembrou que tinha uma escova de dentes na casa de Carol.
– O que você deseja dela, Therese? Para onde isso vai evoluir daqui?
– Por que está tão interessado?
Ele olhou fixo para ela, e por um instante ela viu, sob a raiva, a
curiosidade obstinada que percebera antes, como se ele estivesse assistindo a um
espetáculo pelo buraco da fechadura. Mas ela sabia que ele não era tão distante
assim. Pelo contrário, pressentiu que ele nunca estivera tão ligado a ela quanto agora, nunca tão determinado a não desistir dela. Aquilo a amedrontava. Ela
podia imaginar essa determinação se transformando em ódio e violência.
Richard deu um suspiro e torceu o jornal nas mãos.
– É em você que estou interessado. Não pode me dizer simplesmente
“procure outra”. Eu nunca te tratei da maneira como trato outras pessoas, nunca
pensei em você dessa maneira.
Ela não respondeu.
– Merda! – Richard jogou o jornal na estante e deu as costas para ela.
O jornal raspou na Madona, que se inclinou para trás contra a parede,
como se estivesse espantada, caiu e rolou pela beira do móvel. Richard deu um
mergulho e pegou-a com ambas as mãos. Olhou para Therese e deu-lhe um
sorriso involuntário.
– Obrigada – Therese tirou-a de suas mãos. Levantou-a para botá-la de
volta em seu lugar, em seguida baixou rápido as mãos e espatifou a estátua no
chão.
– Terry !
A Madona jazia em três ou quatro pedaços.
– Deixe para lá! – disse ela. Seu coração batia como se estivesse zangada,
ou brigando.
– Mas...
– Para o diabo! – disse ela, empurrando os pedaços com o seu sapato.
Richard partiu um instante depois, batendo a porta.
O que tinha sido, ponderou Therese, o negócio do Andronich ou Richard?
A secretária do sr. Andronich ligara a cerca de uma hora e dissera que o sr.
Andronich resolvera contratar um assistente da Filadélfia, em vez dela. Assim
não haveria aquele trabalho que ela esperava depois de voltar da viagem com
Carol. Therese olhou para a Madona quebrada. A madeira era bem bonita por
dentro. Rachara bem no veio.
Carol perguntou-lhe naquela noite detalhes de sua conversa com Richard.
Irritou Therese que Carol se preocupasse tanto se Richard ficara ou não
magoado.
– Você não está acostumada a pensar no sentimento alheio – disse-lhe
bruscamente Carol.
Estavam na cozinha, preparando um jantar meio tardio, porque Carol mandara a empregada tirar a tarde de folga.
– Qual o motivo de fato que você tem para pensar que ele não te ama? –
perguntou Carol.
– Talvez eu não entenda como ele funciona. Mas para mim não parece
amor.
Depois, no meio do jantar, no meio de uma conversa sobre a viagem,
Carol comentou de repente:
– Você não tevia ter falado com Richard, de modo algum.
Era a primeira vez que Therese contava algo a Carol sobre isso, algo sobre
a primeira conversa com Richard na lanchonete.
– Por que não? Devia ter mentido para ele?
Carol não comia. Então empurrou sua cadeira para trás e ficou em pé.
– Você é jovem demais para saber o que quer. Ou o que fala. Sim, neste
caso, minta.
Therese largou seu garfo. Ficou olhando Carol pegar um cigarro e
acendê-lo.
– Eu precisava me despedir dele e me despedi. Não o verei de novo.
Carol abriu um painel na base de uma estante e tirou uma garrafa. Encheu
um copo vazio, fechando com força o painel.
– Por que foi fazer isso agora? Por que não fez dois meses atrás ou dois
meses para frente? E por que me mencionou?
– Eu sei... acho que isso o deixa fascinado.
– Provavelmente.
– Mas se eu simplesmente nunca mais for vê-lo... – ela não conseguiu
acabar a frase sobre a incapacidade dele de segui-la ou espioná-la. Não queria
dizer coisas assim para Carol. E, além disso, havia a recordação dos olhos de
Richard. – Acho que ele vai desistir. Ele disse que não era capaz de competir.
Carol bateu com a mão na testa.
– Não era capaz de competir – repetiu ela. Ela voltou para a mesa e botou
um pouco da água de seu copo no uísque. – É verdade. Acabe de jantar. Talvez
eu esteja exagerando tudo isso, não sei.
Mas Therese não se mexeu. Fizera a coisa errada. E na melhor das
hipóteses, mesmo fazendo a coisa certa, ela era incapaz de tornar Carol tão feliz
quanto Carol a tornava, pensou ela do mesmo modo que já pensara centenas de vezes antes. Carol só era feliz em determinados momentos, aqui e ali, momentos
que Therese capturava e guardava. Um fora na noite em que guardaram a
decoração de Natal e Carol dobrara a série de anjos e os pusera entre as páginas
de um livro.
– Vou guardá-los – dissera. – Com 22 anjos para me defender, não posso
perder. – Therese olhou para Carol, e embora Carol a observasse, era através
daquele véu de preocupação que Therese muitas vezes já reparara, que as
mantinha separadas por um abismo.
– Diálogo – disse Carol. – Eu não sou capaz de competir. As pessoas falam
dos clássicos. Esse diálogo é clássico. Uma centena de pessoas dirá as mesmas
palavras. Existe diálogo para a mãe, diálogo para a filha, para o marido e para o
amante. Eu prefiro te ver morta a meus pés. É a mesma peça repetida com
elencos diferentes. O que dizem que faz uma peça ser clássica, Therese?
– Um clássico... – a voz dela parecia rígida e sufocada. – Um clássico é
algo que contém alguma situação humana básica.
Quando Therese acordou, o sol penetrara dentro de seu quarto. Ela ficou
deitada por um instante, a observar os pontos de luz aquosos ondulando no teto
verde-claro, de ouvido atento a qualquer barulho de atividade na casa. Olhou
para sua blusa, pendendo da cômoda. Por que ela era tão desleixada na casa de
Carol? Carol não gostava. O cachorro que morava em algum lugar além das
garagens latia intermitentemente, de má vontade. Houvera um intervalo
agradável na noite passada, o telefonema de Rindy. Rindy que chegara de uma
festa de aniversário às nove e meia. Será que ela podia dar uma festa de
aniversário no seu aniversário em abril? Carol disse claro. Carol ficara diferente
depois disso. Falara sobre a Europa, verões em Rapallo.
Therese ergueu-se e foi até a janela, levantou-a mais e sentou-se no
parapeito, contraindo-se de frio. Não havia manhãs em lugar nenhum iguais às
manhãs dessa janela. No gramado redondo além da alameda de entrada, havia
dardos da luz do sol, como agulhas de ouro espalhadas. Havia fagulhas de sol nas
folhas úmidas da cerca viva, e o céu era de um azul puro e concreto. Ela olhou
para o lugar no caminho da entrada onde Abby estivera naquela manhã, e para o
trecho de cerca branca além das sebes que sinalizava o limite do gramado. O
chão parecia respirar, cheio de juventude, apesar do inverno ter queimado a
grama. Havia árvores e sebes em volta do colégio em Montclair, mas o verde sempre acabava em uma parte de um muro de tijolos vermelho, ou em algum
prédio de pedra cinzento que fazia parte do colégio – uma enfermaria, depósito
de madeira, depósito de ferramentas –, e o verde já parecia velho a cada
primavera, usado e transmitido por uma geração de crianças a outra, fazendo
parte da parafernália estudantil tanto quanto os livros didáticos e os uniformes.
Ela trajava as calças de lã xadrez que trouxera de casa, e uma das
camisas que ela deixara lá em outra ocasião e que fora lavada. Eram oito e vinte.
Carol gostava de levantar lá pelas oito e meia, gostava que alguém a acordasse
com uma caneca de café, embora Therese notasse que ela nunca mandava
Florence fazê-lo.
Florence estava na cozinha quando ela desceu, mas apenas começara a
fazer café.
– Bom dia – disse Therese. – Você se importa se eu fizer o desjejum? –
Florence não se importara nas duas outras vezes em que chegara e encontrara
Therese fazendo as coisas.
– Pode continuar, senhorita – disse Florence. – Eu só vou fazer meus
próprios ovos estrelados. A senhorita gosta de preparar as coisas para a sra. Aird,
não é? – disse ela, em forma de afirmação.
Therese tirava dois ovos da geladeira.
– Sim – respondeu sorrindo. E botou um dos ovos na água, que começava
a ferver. Sua resposta pareceu um tanto insípida, mas que outra resposta haveria?
Quando se virou depois de arrumar a bandeja do desjejum, percebeu que
Florence pusera outro ovo na água. Therese tirou-o com os dedos.
– Ela só quer um ovo – disse Therese. – Esse aí é para minha omelete.
– É mesmo? Ela sempre comeu dois ovos.
– Sim... mas agora não – disse Therese.
– Não deveria controlar o cozimento do ovo, mesmo assim? – Florence
deu-lhe um simpático sorriso profissional. – Ali está o temporizador de ovos, em
cima do fogão.
Therese sacudiu a cabeça.
– Fica melhor quando eu adivinho – por enquanto, ela nunca errara o ovo
de Carol. Carol gostava dele um pouquinho mais cozido do que o preparado pelo
medidor. Therese olhou para Florence, que se concentrava agora nos dois ovos
que fritava na frigideira. O café já estava quase todo coado. Em silêncio,Therese preparou a xícara para levar para Carol.
Mais tarde de manhã, Therese ajudou Carol a recolher as cadeiras
brancas de ferro e o banco de balanço do gramado nos fundos da casa. Seria
mais simples com a presença de Florence, disse Carol, mas Carol a mandara
fazer compras, e teve então o súbito capricho de recolher a mobília. Foi idéia de
Harge deixá-las lá fora durante todo o inverno, disse ela, mas ela achava que elas
pareciam muito tristes. No fim só restou uma cadeira ao lado do chafariz
redondo, uma cadeirinha decorada de metal branco com um traseiro estofado e
quatro pés rendados. Therese olhou para ela e imaginou quem sentara ali.
– Eu gostaria que houvesse mais peças que se passassem ao ar livre –
disse Therese.
– Em que você pensa primeiro quando começa a fazer um cenário?
– Na atmosfera da peça, acho. O que você quer dizer?
– Você pensa no tipo de peça que ela é, ou em algo que você gostaria de
ver?
Um dos comentários do sr. Donohue passou raspando pela sua cabeça,
com uma sensação vagamente desagradável. Carol estava em um estado de
espírito argumentativo esta manhã.
– Acho que você resolveu me considerar uma amadora – disse Therese.
– Acho você meio subjetiva. Isso é meio amadorístico, não é?
– Nem sempre – mas ela percebeu o que Carol quis dizer.
– Você precisa saber muito para ser absolutamente subjetiva, não é? Nas
coisas que me mostrou, acho você muito subjetiva, sem saber o suficiente.
Therese fechou os punhos dentro de seus bolsos. Ela esperara tanto que
Carol gostasse de seu trabalho, incondicionalmente. Ficara terrivelmente
magoada por Carol não ter gostado nada dos poucos cenários que lhe mostrara.
Carol não entendia nada daquilo, tecnicamente, mas era capaz de demolir um
cenário com uma frase.
– Acho que ver o Oeste lhe fará bem. Quando é que você disse que
precisava voltar? Meados de fevereiro?
– Bem, agora não... acabei de saber ontem.
– O que você quer dizer? Gorou? O trabalho da Filadélfia?
– Eles me ligaram. Querem alguém da Filadélfia.
– Ah, querida. Sinto muito.
– Ah, são os ossos do ofício – disse Therese. A mão de Carol estava na sua
nuca, seu polegar a esfregar o posterior de sua orelha, do mesmo modo que ela
poderia estar acariciando um cão.
– Você não ia me contar.
– Ia sim.
– Quando?
– Em algum ponto da viagem.
– Ficou muito decepcionada?
– Não – disse Therese categoricamente.
Elas esquentaram a última xícara de café, levaram-na até a cadeira
branca no gramado e dividiram-na.
– Vamos almoçar fora em algum lugar? – perguntou-lhe Carol. – Vamos
ao clube. Depois preciso fazer umas compras em Newark. Que tal um casaco?
Gostaria de um casaco de tweed?
Therese estava sentada na beira do chafariz, com uma mão apertando a
orelha que doía por causa do frio.
– Não preciso especialmente de um – disse ela.
– Mas eu gostaria especialmente de vê-la vestida em um.
Therese estava em cima, trocando de roupa, quando o telefone tocou.
Ouviu Florence dizer:
– Ah, bom dia sr. Aird. Sim, vou chamá-la imediatamente – e Therese
atravessou o quarto e fechou a porta. Inquieta, começou a arrumar as coisas,
pendurou suas roupas no armário e alisou a cama que já fizera. Em seguida,
Carol bateu na porta e enfiou a cabeça para dentro do quarto:
– Harge vai dar uma passadinha aqui dentro de poucos minutos. Não creio
que vá ficar muito tempo.
Therese não queria vê-lo.
– Você gostaria que eu saísse para dar um passeio?
Carol sorriu.
– Não. Fique aqui em cima e leia um livro, se quiser.
Therese pegou o livro que comprara ontem, o Oxford Book of English
Verse, e tentou lê-lo, mas as palavras não se articulavam nem faziam sentido. Ela
tinha uma sensação desagradável de estar se escondendo, por isso foi até a porta
e abriu-a.
Carol estava acabando de sair de seu quarto e, por um instante, Therese
percebeu o mesmo ar indeciso cruzar seu rosto, igual ao que Therese recordava
da primeira vez que entrara na casa. Então ela disse:
– Desça.
O carro de Harge estava chegando enquanto elas entraram na sala de
estar. Carol foi até a porta, e Therese ouviu-os trocarem cumprimentos, o de
Carol apenas cordial, mas o de Harge muito alegre, e Carol entrou com uma
longa caixa de flores nos braços.
– Harge, esta é a Srta. Belivet. Acho que já encontrou-a uma vez – disse
Carol.
Os olhos de Harge se estreitaram um pouco, em seguida se abriram.
– Ah, sim. Como vai?
– Como vai?
Florence entrou, e Carol entregou-lhe a caixa de flores.
– Ponha-as em um lugar qualquer – disse Carol.
– Ah, aqui está aquele cachimbo. Eu bem que achei – Harge estendeu a
mão por trás da hera em cima do consolo da lareira e surgiu com um cachimbo.
– Tudo bem em casa? – perguntou Carol, ao sentar na extremidade do
sofá.
– Sim. Tudo bem – o sorriso tenso de Harge não punha seus dentes à
mostra, porém seu rosto e a maneira rápida de virar a cabeça irradiavam
cordialidade e presunção. Ele observou com um prazer de proprietário Florence
trazer as flores, rosas vermelhas, num jarro, que botou na mesinha em frente ao
sofá.
Therese desejou de repente ter trazido flores para Carol, em qualquer das
poucas oportunidades passadas, e lembrou das flores que Dannie lhe trouxera um
dia em que ele simplesmente aparecera no teatro. Ela olhou para Harge, e os
olhos dele se desviaram dos seus, a testa pálida se erguendo ainda mais, os olhos
fugindo por todos os cantos, como se procurasse pequenas mudanças na sala.
Mas podia ser tudo fingimento, pensou Therese, aquele seu ar de saudável
alegria. E se ele se importava em fingir, também devia se importar, de alguma
maneira, em relação a Carol.
– Posso levar uma para Rindy ? – perguntou Harge.
– É claro – Carol se levantou, e teria quebrado uma flor, se Harge não tivesse se adiantado e cortado o caule com um pequeno canivete, separando a
flor. – São muito lindas. Obrigada, Harge.
Harge ergueu a flor até o nariz. E meio para Carol, meio para Therese,
disse:
– É um belo dia. Vocês vão sair de carro?
– Sim, íamos – disse Carol. – Aliás, eu gostaria de fazer uma visita de
tarde, na semana que vem. Talvez na terça.
Harge pensou por um instante.
– Está bem. Direi a ela.
– Vou falar com ela no telefone. Eu quis dizer para avisar sua família.
Harge balançou a cabeça uma vez, aquiescente, em seguida olhou para
Therese.
– Sim, eu me lembro de você. Claro. Você estava aqui há umas três
semanas. Antes do Natal.
– Sim. Num domingo – Therese se levantou. Ela queria deixá-los sozinhos.
– Vou lá para cima. Até logo, sr. Aird.
Harge fez uma pequena mesura.
– Até logo.
Enquanto ela subia a escada, ouviu Harge dizer:
– Bem, muitas felicidades, Carol. É o que eu quero te desejar. Você não se
importa?
O aniversário de Carol, pensou Therese. É claro que Carol não lhe teria
dito.
Ela fechou a porta e olhou em volta do quarto, percebeu que estava
procurando um sinal qualquer de que passara a noite ali. Não havia nenhum. Ela
parou diante do espelho e olhou para si mesma durante um instante, franzindo a
testa. Não estava tão pálida quanto há três semanas quando Harge a viu; ela não
se sentia como a coisinha desgostosa e amedrontada que Harge conhecera então.
Da gaveta de cima, tirou sua bolsa e pegou o batom. Em seguida ouviu Harge
bater na porta, e então fechou a gaveta.
– Entre.
– Dá licença. Eu preciso pegar uma coisa – ele atravessou depressa o
quarto, entrou no banheiro e voltou sorrindo com a navalha na mão. – Você
estava no restaurante com Carol no domingo passado, não estava?
– Sim – respondeu Therese.
– Carol disse que você é cenógrafa.
– Sim.
Ele olhou do rosto dela para as mãos, até o chão, e subiu de novo.
– Espero que você estimule Carol a sair bastante – disse ele. – Você
parece jovem e ativa. Faça ela dar umas caminhadas.
Em seguida ele saiu lepidamente, deixando atrás de si um ligeiro perfume
de creme de barbear. Therese jogou seu batom em cima da cama e esfregou as
mãos no lado do vestido. Ficou imaginando por que Harge se dera ao trabalho de
dizer que estava cansado de saber que ela passava muito tempo com Carol.
– Therese! – chamou Carol de repente. – Desça!
Carol estava sentada no sofá. Harge fora embora. Ela olhou para Therese
com um sorrisinho. Então Florence chegou e Carol disse:
– Florence, você pode levá-las para outro lugar qualquer. Ponha-as na sala
de jantar.
– Sim, senhora.
Carol piscou o olho para Therese.
Therese sabia que ninguém usava a sala de jantar. Carol preferia comer
em qualquer outro lugar.
– Por que não me disse que era seu aniversário? – perguntou-lhe Therese.
– Ah! – riu Carol. – Não é. É aniversário de casamento. Pegue seu casaco
e vamos embora.
Ao saírem de ré pelo caminho, Carol disse:
– Se existe algo que não tolero, é a hipocrisia.
– O que ele disse?
– Nada de importante – sorriu Carol.
– Mas você disse que ele era um hipócrita.
– Par excellence.
– Fingindo todo aquele bom humor?
– Ah... apenas parcialmente quanto a isso.
– Ele falou alguma coisa sobre mim?
– Ele disse que você parecia uma boa menina. Isso é novidade? – Carol
disparou o carro pela estrada estreita até a aldeia. – Disse que o divórcio levará
umas seis semanas a mais do que achávamos, devido a algumas formalidades.
Isso é novidade. Ele acha que eu talvez ainda mude de idéia nesse meio tempo.
Isso é hipocrisia. Acho que ele gosta de se enganar.
Será que a vida, as relações humanas eram sempre assim?, pensou
Therese. Jamais terra firme sob os pés. Sempre como cascalho, que cede um
pouco, faz barulho para que todo mundo ouça, de modo que até a gente fica de
escuta também, à espera do passo áspero e sonoro do pé do intruso.
– Carol, eu nunca peguei aquele cheque, sabe – comentou de repente
Therese. – Enfiei-o sob o pano na mesinha de cabeceira da minha cama.
– O que te fez pensar nisso?
– Não sei. Você quer que eu o rasgue? Comecei a fazê-lo naquela noite.
– Se você insiste – disse Carol.

CarolOnde histórias criam vida. Descubra agora