Na terça, o quinto dia de trabalho, Therese estava sentada num pequeno
cômodo vazio, sem teto, nos fundos do Black Cat Theatre, esperando que o sr.
Donohue, o novo diretor, viesse olhar a sua maquete de papelão. Na manhã
anterior, Donohue substituíra Cortes no cargo de diretor, refugara sua primeira
maquete e também refugara Phil McElroy como o segundo irmão na peça. Phil
fora embora na véspera todo ofendido. Tivera sorte de não ter sido refugada
junto com sua maquete, pensou Therese, por isso seguiu à risca as instruções do
sr. Donohue. A nova maquete não tinha a parte móvel que ela pusera na primeira,
o que permitiria que a cena da sala de estar se convertesse na cena do terraço, no
último ato. O sr. Donohue parecia resistir firmemente a qualquer coisa fora do
comum, ou até mesmo simples. Ao situar toda a peça na sala de estar, muitos
diálogos precisaram ser mudados no último ato, e algumas das falas mais
inteligentes se perderam. Sua nova maquete indicava uma lareira, largas janelas
de batente dando para um terraço, duas portas, um sofá e um par de poltronas e
uma estante de livros. Pronta, teria o aspecto da sala de um modelo de casa no
Sloan’s, verossímel até o último cinzeiro.
Therese se levantou, se espreguiçou e estendeu a mão para pegar a
jaqueta de veludo cotelê pendurada num prego na porta. O lugar era frio como
um celeiro. O sr. Donohue só viria provavelmente de tarde, ou talvez nem hoje,
se ela não lhe fizesse recordar esta necessidade de novo. Não havia pressa quanto
ao cenário. Talvez fosse a coisa menos problemática em toda a produção, mas
ela ficara acordada até tarde na noite anterior, trabalhando com entusiasmo na
nova maquete.
Ela saiu para ir de novo aos bastidores. O elenco estava todo no palco,
com o roteiro na mão. O sr. Donohue não parava de fazê-los ler a peça toda, para
deixar a coisa fluir, disse ele, mas hoje parecia que era apenas para dar-lhes
sono. Todo o elenco dava a impressão de preguiça, exceto Tom Harding, um
rapaz alto e louro, dono do papel masculino principal, e sua energia era um pouco
exagerada. Georgia Halloran estava com dor de cabeça, devido à sinusite, e tinha
de parar a cada hora para botar gotas no nariz e se deitar durante alguns minutos.
Geoffrey Andrews, um sujeito de meia-idade que representava o pai da heroína,
vivia resmungando no meio de seus diálogos, porque não gostava de Donohue.
– Não, não, não, não – disse o sr. Donohue, pela décima vez naquela
manhã, parando tudo e fazendo com que todos baixassem seus roteiros e se
virassem para ele com uma docilidade perplexa, irritada. – Vamos começar de
novo a partir da página 28.
Therese observou-o a acenar seus braços para indicar quem falaria,
levantando a mão para fazê-los calar, seguindo o roteiro de cabeça abaixada
como se regesse uma orquestra. Tom Harding piscou o olho para ela e apertou o
nariz com a mão. Um momento depois, Therese voltou para o cômodo atrás da
divisória, onde trabalhava, onde se sentia um pouquinho menos inútil. Ela agora
sabia a peça quase de cor. Tinha uma intriga tipo comédia de erros, um tanto
Sheridanesca – dois irmãos que fingem ser o senhor e o criado, para
impressionar uma herdeira pela qual um deles está apaixonado. O diálogo era
espirituoso e não de todo ruim, mas o cenário, triste e convencional, tal como
Donohue mandara fazer – Therese esperava que ainda se pudesse fazer alguma
coisa por ele com as cores que usariam.
O sr. Donohue veio, sim, logo depois do meio-dia. Olhou a maquete dela,
levantou-a e examinou-a por baixo e de ambos os lados, sem demonstrar
nenhuma mudança na sua expressão atormentada, nervosa.
– Sim, está ótimo. Gostei muito. Está vendo como é muito melhor do que
aquelas paredes vazias que tinha antes?
Therese respirou fundo de alívio.
– Sim – disse ela.
– Um cenário se organiza a partir das necessidades dos atores. O que está
fazendo não é um cenário de balé, srta. Belivet.
Ela assentiu com a cabeça, olhando também para a maquete e
procurando ver como ela se tornara possivelmente melhor, mais funcional.
– O carpinteiro virá esta tarde, lá pelas quatro horas. Vamos nos reunir e
conversar sobre isto. – O sr. Donohue saiu.
Therese olhou para a maquete de papelão. Pelo menos ela a veria ser
usada. Pelo menos ela e os carpinteiros a fariam se tornar algo concreto. Foi até
a janela e olhou para o céu de inverno cinzento mas luminoso, para os fundos de
algumas casas de cinco andares ornamentadas com escadas de incêndio. Em primeiro plano havia um pequeno terreno baldio contendo uma árvore raquítica
sem folhas, toda retorcida como um poste de sinalização desnorteado. Ela
gostaria de poder ligar para Carol e convidá-la para almoçar. Mas Carol estava a
uma hora e meia de carro de distância.
– Seu nome é Beliver?
Therese virou-se para a garota no vão da porta:
– Belivet. Telefone?
– O telefone ao lado das luzes.
– Obrigada.
Therese foi depressa, esperando que fosse Carol, mas sabendo ser mais
provável que fosse Richard. Carol ainda não ligara para ela ali.
– Oi, aqui é Abby.
– Abby? – Therese sorriu. – Como sabe que estou aqui?
– Você me disse, lembra? Eu gostaria de ver você. Não estou longe. Você
já almoçou?
Concordaram em se encontrar no Palermo, um restaurante a um
quarteirão ou dois do BlackCat.
Therese foi assobiando uma cantiga enquanto caminhava para lá, tão feliz
como se fosse encontrar Carol. O chão do restaurante estava coberto de
serragem, e dois gatinhos pretos brincavam sob o trilho do bar. Abby estava
sentada numa mesa dos fundos.
– Oi – disse Abby quando ela se aproximou. – Você está com aspecto
muito alegre. Eu quase não te reconheci. Quer um drinque?
Therese sacudiu a cabeça.
– Não, obrigada.
– Você quer dizer que está tão feliz que não precisa? – perguntou Abby e
deu um risinho com aquele humor íntimo que de certo modo em Abby não
significava desfeita.
Therese aceitou o cigarro que Abby lhe ofereceu. Abby sabia, pensou. E
talvez também estivesse apaixonada por Carol. Isto punha Therese na defensiva
contra ela. Aquilo criava uma rivalidade tácita que lhe dava uma curiosa alegria,
a sensação de certa superioridade em relação a Abby – emoções que Therese
jamais conhecera antes, que jamais sonhara ter, conseqüentemente emoções em
si mesmas revolucionárias. Assim o almoçar juntas no restaurante tornou-se quase tão importante quanto o encontro com Carol.
– Como está Carol? – perguntou Therese. Não via Carol há três dias.
– Está muito bem – disse Abby, observando-a.
Chegou o garçom e Abby perguntou-lhe se ele recomendava os
mexilhões e os escalopes.
– Excelentes, madame! – E deu um sorriso radiante para ela como se ela
fosse uma freguesa especial.
Era o jeito de Abby, o brilho em seu rosto, como se hoje, ou qualquer dia,
fosse um feriado especial para ela. Therese gostava disso. Ela olhou com
admiração para o conjunto de Abby, de um tecido entremeado de vermelho e
azul, para suas abotoaduras que pareciam Gs retorcidos, como botões de prata
filigranados. Abby perguntou sobre seu trabalho no Black Cat. Era tedioso para
Therese, mas Abby pareceu impressionada. Ficou impressionada, pensou
Therese, porque ela não faz nada.
– Conheço algumas pessoas no ramo de produção teatral – disse Abby. –
Teria muito prazer em te recomendar, quando quiser.
– Obrigada – Therese brincava com a tampa do recipiente de queijo
ralado diante dela. – Você conhece alguém chamado Andronich? Acho que ele é
de Filadélfia.
– Não – disse Abby.
O sr. Donohue dissera-lhe para procurar Andronich na próxima semana
em Nova York. Ele estava produzindo um show que ia estrear na primavera em
Filadélfia, e em seguida na Broadway.
– Experimente os mexilhões – Abby comia com vontade. – Carol também
gosta.
– Você conhece Carol há muito tempo?
– Um-hm – Abby balançou a cabeça, olhando para ela com um olhar
límpido que nada revelava.
– E você também conhece o marido dela, naturalmente.
Abby aquiesceu novamente, em silêncio.
Therese sorriu um pouco. Abby estava decidida a interrogá-la, sentiu, mas
não a deixar transparecer coisa alguma sobre si mesma ou Carol.
– Que tal vinho? Gosta de Chianti? – Abby chamou um garçom com um
estalar de dedos. – Traga uma garrafa de Chianti, por favor. Um dos bons. É bom para o sangue – acrescentou ela para Therese.
Em seguida veio o prato principal, e dois garçons passaram a se ocupar
meticulosamente da mesa, tirando a rolha do Chianti, servindo mais água e
trazendo nova remessa de manteiga. O rádio no canto tocava um tango – um
caixotinho de rádio com a frente quebrada, mas a música saída dele parecia vir
de uma orquestra de cordas atrás, encomendada por Abby. Não é de espantar
que Carol gosta dela, pensou Therese. Ela complementava a solenidade de Carol,
fazia com que Carol se lembrasse de rir.
– Você sempre morou sozinha? – perguntou Abby.
– Sim. Desde que saí do colégio – Therese sorveu seu vinho. – Você
também? Ou mora com a família?
– Com a família. Mas metade da casa é só minha.
– E você trabalha? – aventurou-se Therese.
– Já tive alguns trabalhos. Dois ou três. Carol não te contou que nós já
tivemos uma loja de móveis? Tivemos uma loja logo depois de Elizabeth, na
auto-estrada. A gente comprava antigüidades, ou simplesmente móveis de
segunda mão, e dava um jeito neles. Eu nunca trabalhei tanto na minha vida –
Abby sorriu alegremente para ela, como se cada palavra pudesse não ser
verdade. – Meu outro trabalho. Sou entomologista. Não muito boa, mas o
suficiente para tirar brocas de caixotes de limões italianos e coisas assim. Os
lírios das Bahamas estão cheios de insetos.
– Já ouvi falar – sorriu Therese.
– Acho que você não acredita em mim.
– Acredito sim. Você ainda trabalha com isso?
– Estou na reserva. Só trabalho em períodos de emergência. Como na
Páscoa.
Therese ficou olhando a faca de Abby a cortar o escalopinho em
pequenos pedaços antes de pegá-los.
– Você viaja muito com Carol?
– Muito? Não, por quê? – perguntou Abby.
– Acho que você deve fazer bem a ela. Porque Carol é tão séria.
Therese gostaria de conduzir a conversa ao âmago dos problemas, mas o
que seria exatamente o âmago dos problemas, ela não sabia. O vinho corria
lentamente pelas suas veias, esquentando-a até as pontas de seus dedos – Não o tempo todo – corrigiu Abby, com o humor que se escondia sob a
superfície da sua voz, tal como na primeira palavra que Therese recebera dela.
O vinho em sua cabeça prometia música, poesia ou a verdade, mas ela
ficou perdida na periferia. Therese não conseguia pensar em uma só pergunta
apropriada, devido à enormidade de todas as suas perguntas.
– Como você conheceu Carol? – perguntou Abby.
– Carol não te contou?
– Ela disse apenas que te conheceu na Frankenberg’s quando você
trabalhava lá.
– É, foi assim – disse Therese, sentindo contra Abby uma animosidade
que se avolumava, descontroladamente.
– Você simplesmente começou a falar? – perguntou Abby com um
sorriso, acendendo um cigarro.
– Eu a servi – respondeu Therese, e parou.
E Abby ficou esperando uma descrição precisa daquele encontro,
Therese sabia, mas ela não a daria a Abby nem a mais ninguém. Aquilo lhe
pertencia. Com certeza Carol não contara a Abby, pensou Therese, a história
boba do cartão de Natal. Carol não lhe daria assim tanta importância para que
contasse a Abby.
– Você se importa em me dizer quem falou primeiro?
Therese de repente riu. Ela estendeu a mão para pegar um cigarro e
acendeu-o, ainda sorrindo. Não, Carol não lhe contara a respeito do cartão de
Natal, e a pergunta de Abby pareceu-lhe extremamente engraçada.
– Fui eu – disse Therese.
– Você gosta muito dela, não gosta? – perguntou Abby.
Therese vasculhou a frase em busca de hostilidade. Não era hostil, havia
apenas ciúme:
– Sim.
– Por que gosta?
– Por que eu gosto? Por que você gosta?
Ainda havia riso nos olhos de Abby :
– Conheço Carol desde que ela tinha quatro anos de idade.
Therese não disse nada.
– Você é terrivelmente jovem, não é? Já tem vinte e um anos?
– Não. Quase.
– Você sabe que Carol está cheia de preocupações no momento, não sabe?
– Sim.
– E se sente solitária no momento – acrescentou Abby, com um olhar
vigilante.
– Você quer dizer que é por causa disso que ela me vê? – perguntou
calmamente Therese. – Está querendo me dizer que não devo vê-la?
Os olhos de Abby que não pestanejavam, acabaram pestanejando duas
vezes, assim mesmo:
– Não, nem um pouco. Mas eu não quero que você se machuque. Nem
quero que você machuque Carol.
– Eu jamais machucaria Carol – disse Therese. – Acha que eu a
machucaria?
Abby ainda a observava alertamente, sem jamais tirar os olhos dela.
– Não, não acho – respondeu Abby, como se tivesse acabado de decidir
aquilo naquele momento. E então sorriu, como se estivesse especialmente
satisfeita com alguma coisa.
Mas Therese não gostou do sorriso, e percebendo que seu rosto traía seus
sentimentos, olhou para a mesa. Havia uma taça cheia de zabaglione quente num
prato diante dela.
– Você gostaria de ir a um coquetel esta tarde, Therese? É em um bairro
residencial, lá pelas seis horas. Não sei se haverá cenógrafos presentes, mas uma
das garotas que dão o coquetel é atriz.
Therese apagou seu cigarro:
– Carol vai?
– Não. Não vai. Mas o pessoal é todo de fácil convívio. É pequena a
reunião.
– Não, obrigada. Acho que não posso. Talvez eu tenha que trabalhar até
tarde hoje.
– Ah, eu ia te dar o endereço, de qualquer maneira, mas se você não vai...
– Não – disse Therese.
Abby queria dar uma volta no quarteirão depois de saírem do restaurante.
Therese concordou, apesar de já estar cansada de Abby no momento. Abby
com sua arrogância, suas perguntas indelicadas e displicentes fez com que Therese sentisse que levara vantagem. E Abby não a deixara pagar a conta.
Abby disse:
– Carol te considera muito, sabe. Ela disse que você tem um talento
danado.
– Falou? – disse Therese, acreditando só pela metade. – Ela nunca me
disse – ela queria andar mais depressa, mas Abby retardava o passo delas.
– Você deve saber que ela te considera muito, já que ela quer que você
faça uma viagem com ela.
Therese olhou e viu Abby sorrindo para ela sem malícia.
– Ela também não me disse nada disso – disse calmamente Therese,
embora seu coração começasse a bater forte.
– Tenho certeza que dirá. Você vai com ela, não vai?
Por que haveria Abby de saber antes dela?, pensou Therese. Ela sentiu o
sangue lhe subir nas faces, de raiva. De que se tratava? Será que Abby a
detestava? Se assim fosse, porque ela não era coerente? Em seguida, no próximo
momento, a raiva parou de crescer e baixou, deixando-a fraca, vulnerável e
indefesa. Ela pensou, se Abby me imprensasse contra o muro naquele momento
e dissesse: confesse, o que você quer de Carol? Quanto dela deseja roubar de
mim?, ela teria confessado tudo. Teria dito: eu quero estar junto com ela. Adoro
ficar junto dela, e o que você tem com isso?
– Não cabe a Carol falar sobre isso? Por que me pergunta essas coisas? –
Therese fez um esforço para parecer indiferente. Foi inútil.
Abby parou de andar:
– Desculpe – disse, virando-se para ela. – Acho que eu agora compreendo
melhor.
– Comprende o quê?
– Apenas que... você ganhou.
– Ganhei o quê?
– O quê – repetiu Abby com a cabeça levantada, olhando para o canto de
um prédio, para o céu, e Therese de repente sentiu uma impaciência furiosa.
Ela queria que Abby fosse embora para poder telefonar para Carol. Nada
importava exceto a voz de Carol. Nada importava a não ser Carol, e por que se
permitira esquecer disso por um momento?
– Não é de espantar que Carol te considere tanto – disse Abby, porém se aquilo foi um comentário afável, Therese não o aceitou como tal. – Até logo,
Therese. Eu te verei de novo, com certeza – e Abby estendeu a mão.
Therese apertou-a:
– Até logo – disse. Ela ficou olhando Abby a caminhar em direção a
Washington Square, agora com um passo mais apressado e a cabeça
encaracolada erguida.
Therese entrou na farmácia na próxima esquina e ligou para Carol. A
empregada atendeu e depois Carol.
– Qual é o problema? – perguntou Carol. – Você parece deprimida.
– Nada. O trabalho anda chato.
– Você vai fazer alguma coisa esta noite? Gostaria de vir até aqui?
Therese saiu sorrindo da farmácia. Carol vinha pegá-la às cinco e meia.
Carol insistiu em vir apanhá-la, porque era uma viagem tão chata de trem.
Do outro lado da rua, ela avistou, se afastando dela, Dannie McElroy,
caminhando sem casaco, carregando uma garrafa desembrulhada de leite na
mão.
– Dannie – chamou ela.
Dannie se virou e veio andando até ela:
– Quer entrar por alguns minutos? – berrou ele.
Therese começou a dizer não, mas em seguida, quando ele se aproximou,
ela apertou seu braço:
– Só um minutinho. Já tive uma hora de almoço bem longa.
Dannie sorriu para ela.
– Que horas são? Andei estudando até quase ficar cego.
– Passam das duas. – Ela sentiu o braço de Dannie contraído por causa do
frio. A pele de seu antebraço estava toda arrepiada sob os cabelos escuros. –
Você é louco de sair sem casaco – disse ela.
– Isso clareia a minha cabeça – ele segurou o portão de ferro que dava
para sua porta. – Phil saiu para algum lugar.
O quarto cheirava a fumo de cachimbo, lembrando um pouco chocolate
no fogo. O apartamento era um meio porão, de modo geral escuro, e a lâmpada
fazia uma poça quente de luz em cima da mesa que vivia entulhada. Therese
olhou para os livros abertos na mesa, páginas e páginas cobertas de símbolos que
ela não conseguia compreender, mas que gostava de olhar. Tudo que os símbolos representavam era verdade e provado. Os símbolos eram mais fortes e definidos
que as palavras. Ela sentia que a cabeça de Dannie se balançava neles, passando
de um fato a outro, como se pendesse de correntes resistentes, passando de uma
mão para outra no espaço. Ela observou-o fazendo um sanduíche, em pé junto à
mesa da cozinha. Seus ombros pareciam muito largos com músculos bem
torneados sob a camisa branca, que se moviam um pouco com os gestos de botar
o salame e as fatias de queijo no grande pedaço de pão de centeio.
– Eu gostaria que você viesse mais vezes, Therese. Quarta é o único dia
em que não estou em casa ao meio-dia. A gente não atrapalha o Phil, almoçando,
mesmo se ele estiver dormindo.
– Virei – disse Therese. E sentou-se na cadeira de sua escrivaninha, meio
virada para fora. Ela viera almoçar uma vez, e outra vez depois do trabalho.
Gostava de visitar Dannie. Não era preciso fazer conversa fiada com ele.
No canto do quarto, o sofá-cama de Phil jazia desarrumado, um
emaranhado de lençóis e cobertas. Nas duas vezes anteriores em que ela viera, a
cama estava por fazer, ou então Phil estava deitado nela. A longa estante
colocada em um ângulo reto em relação ao sofá fazia do canto de Phil uma
unidade separada do quarto, que vivia bagunçada, uma desordem nervosa e
frustrada, que de modo algum se assemelhava à desordem funcional da
escrivaninha de Dannie.
A lata de cerveja de Dannie deu um sibilo ao ser aberta. Ele se encostou
na parede com a cerveja e o sanduíche, sorrindo, encantado pela presença dela
ali.
– Você se lembra do que disse sobre a física não se aplicar às pessoas?
– Humm. Vagamente.
– Bem, duvido que você tenha razão – disse ele, ao dar uma mordida no
sanduíche. – Olhe só as amizades, por exemplo. Posso pensar numa porção de
casos em que as duas pessoas nada têm em comum. Acho que existe um motivo
preciso para cada amizade, do mesmo modo que existe um motivo para
determinados átomos se reunirem e outros não – determinados fatores ausentes
num caso, e presentes em outro – o que você acha? Acho que as amizades são o
resultado de certas necessidades que podem ser completamente ocultas para
ambas as pessoas, às vezes ocultas para sempre.
– Talvez. Eu também consigo pensar em alguns casos – Richard e ela mesma, por exemplo. Richard se dava bem com as pessoas, abria seu caminho
no mundo aos empurrões de uma maneira que ela era incapaz de fazer. Ela
sempre se sentira atraída por gente com o tipo de segurança que Richard tinha. –
E qual é a sua fraqueza, Dannie?
– Aminha? – disse ele sorrindo. – Você quer ser minha amiga?
– Sim. Mas você deve ser a pessoa mais forte que eu conheço.
– Verdade? Devo enumerar minhas falhas?
Ela sorriu ao olhar para ele. Um rapaz de 25 que já sabia o seu rumo
desde os quatorze anos. Ele investira toda sua energia num só canal – exatamente
o oposto do que Richard fizera.
– Eu tenho uma necessidade oculta de uma cozinheira – disse Dannie – e
de uma professora de dança, e de alguém que me lembre pequenas coisas como
levar a roupa suja para a lavanderia e cortar meu cabelo.
– Eu também não consigo lembrar quando devo levar minha roupa para a
lavanderia.
– Ah – disse ele, desanimado. – Então está fora de cogitação. Eu tinha
alguma esperança. Tinha uma sensaçãozinha de algo predestinado. Porque, veja
só, o que eu quero dizer sobre a afinidade é que funciona tanto para a amizade
quanto para o olhar acidental que se dá para alguém na rua – existe sempre um
determinado motivo em alguma parte. Acho que até os poetas concordariam
comigo.
Ela sorriu.
– Até os poetas? – ela pensou em Carol, depois em Abby, da conversa
delas no almoço que representara muito mais que um olhar, e muito menos, e a
seqüência de emoções que provocara nela. Aquilo a deprimiu. – Mas você
precisa aceitar as perversidades de cada um, coisas que não fazem muito sentido.
– Perversidades? Isso é apenas um subterfúgio. Uma palavra que os
poetas usam.
– Eu achava que fosse usada pelos psicólogos – disse Therese.
– Quero dizer, fazer concessões... isto é uma expressão sem sentido. A
vida é uma ciência exata em seus próprios termos e se resume apenas em uma
questão de encontrá-los e defini-los. O que não faz sentido para você?
– Nada. Eu estava pensando em algo sem importância, aliás – ela estava
com raiva de novo, como estivera na calçada depois do almoço.
– Em quê? – insistiu ele, franzindo o cenho.
– No almoço que tive – disse ela.
– Com quem?
– Não importa. Se importasse, eu aprofundava isso. É apenas um
desperdício, como perder alguma coisa, eu acho. Mas talvez algo que não exista,
aliás – ela quisera gostar de Abby porque Carol gostava.
– Salvo na sua cabeça? Isso pode ainda assim ser uma perda.
– Sim, mas há certas pessoas e certas coisas que as pessoas fazem das
quais não se salva nada, afinal de contas, porque não têm conexão nenhuma com
você – ela queria falar de outra coisa, contudo, que não era absolutamente isso.
Não de Abby, nem de Carol, mas de antes. Algo que tinha uma conexão perfeita
e fazia um sentido perfeito. Ela amava Carol. Inclinou a testa de encontro à sua
mão.
Dannie olhou-a por um momento, em seguida se desencostou da parede.
Virou-se para o fogão e tirou um fósforo do bolso da camisa, e Therese sentiu
que a conversa vacilava, sempre vacilaria e nunca terminaria, não importa o que
viessem a dizer. Mas ela sentia que se contasse a Dannie cada palavra que ela e
Abby trocaram, ele era capaz de apagar seus subterfúgios com uma frase, como
se borrifasse um produto químico no ar que dissolveria instantaneamente a
névoa. Ou haveria sempre alguma coisa a que a lógica não teria acesso? Alguma
coisa ilógica por trás do ciúme, da desconfiança e da hostilidade na conversa de
Abby, que era Abby em estado puro?
– Nem tudo é tão simples como uma porção de combinações –
acrescentou Therese.
– Algumas coisas não reagem. Mas tudo está vivo – e ele se virou com um
largo sorriso, como se um outro fio de pensamento, bem diferente, tivesse
penetrado na sua cabeça. Ele erguia o fósforo, ainda fumegante. – Como este
fósforo. Não estou falando de física, sobre a indestrutibilidade da fumaça. Na
verdade, me sinto um tanto poético hoje.
– Sobre o fósforo?
– Sinto que ele está crescendo, como uma planta, e não sumindo. Acho
que, às vezes, tudo no mundo deve ter a textura de uma planta, para um poeta.
Até mesmo esta mesa, tal como minha própria carne – ele encostou a palma da
mão na borda da mesa. – É como uma sensação que tive uma vez, subindo um morro a cavalo. Foi na Pensilvânia. Eu não sabia montar muito bem naquela
época, e me lembro do cavalo virando a cabeça e vendo o morro e resolvendo
subi-lo correndo, suas patas traseiras afundaram antes da gente decolar, e de
repente a gente ia disparado e eu não tinha medo nenhum. Eu me senti em total
harmonia com o cavalo e a paisagem, como se fôssemos uma árvore com os
galhos a se remexerem ao vento. Eu me lembro de ter certeza de que nada me
aconteceria naquela ocasião, mas em outras, eventualmente, sim. Eu me senti
muito feliz. Pensei em todas as pessoas que têm medo e escondem coisas, e elas
mesmas, e pensei, quando todo mundo vier a perceber o que eu senti subindo o
morro, então haverá um tipo certo de economia do vital, de como usar as coisas,
de exauri-las. Sabe o que eu quero dizer? – Dannie fechara os punhos, mas seus
olhos brilhavam como se ainda risse de si mesmo. – Você já gastou totalmente
algum suéter pelo qual tinha uma afeição especial e acabou por jogá-lo fora?
Ela pensou nas luvas de lã verdes da Irmã Alícia, que ela nem usara nem
jogara fora.
– Sim – disse ela.
– Bem, é isso o que eu quero dizer. É como os carneiros, eles não
percebem a quantidade de lã que perdem quando alguém os tosqueou para fazer
o suéter porque conseguem produzir mais lã. É muito simples – ele se virou para
o bule de café que requentara e já fervia.
– Sim – ela sabia. Era como Richard e a pipa, porque ele podia fazer outra
pipa. Ela pensou em Abby com uma sensação de vazio, de repente, como se o
almoço tivesse sido erradicado. Por um instante sentiu como se sua mente tivesse
extrapolado algum limite e nadasse vazia no espaço. Ela se levantou.
Dannie avançou, colocou suas mãos sobre os ombros dele, e, apesar de
ela sentir que era apenas um gesto, um gesto no lugar de uma palavra, o encanto
foi quebrado. Ela ficou desconfortável com o toque dele, e o desconforto tornou-
se quase algo palpável.
– Preciso voltar – ela disse. – Estou bastante atrasada.
As mãos dele se aproximaram, segurando os cotovelos dela com força
contra seu corpo, e beijou-a de repente, pressionando os lábios com força contra
os dela, por um instante, e ela sentiu o bafo quente dele no seu lábio superior,
antes que a soltasse.
– Está – disse, olhando para ela.
– Por que você... – ela parou, porque o beijo tivera tamanha mistura de
carinho com violência que ela não sabia como encará-lo.
– Por que, Terry? – disse ele, afastando-se dela, sorrindo. – Você se
aborreceu?
– Não – disse ela.
– Será que Richard se aborreceria?
– Acho que sim – ela abotoou seu casaco. – Preciso ir – disse, se movendo
em direção à porta.
Dannie abriu completamente a porta para ela, com seu sorriso fácil, como
se nada tivesse acontecido.
– Volta amanhã? Venha almoçar.
Ela sacudiu a cabeça.
– Acho que não. Estou ocupada esta semana.
– Está bem, venha... na segunda que vem, quem sabe?
– Está bem – ela sorriu também e estendeu automaticamente a mão, que
Dannie apertou polidamente.
Ela percorreu correndo os dois quarteirões até o Black Cat. Um pouco
como o cavalo, pensou. Mas não o suficiente, não o suficiente para chegar à
perfeição, e o que Dannie pretendia era a perfeição.
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Carol
RomanceTherese Belivet tem um emprego entediante em uma loja de departamentos. Um dia, ela conhece Carol, uma elegante e misteriosa cliente. Rapidamente, as duas mulheres desenvolvem um vínculo amoroso que terá consequências sérias.