Capítulo 1

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A hora do almoço no refeitório dos funcionários da Frankenberg’s chegara
a seu auge.
Não havia lugar em nenhuma das longas mesas, e chegava cada vez mais
gente que se punha a esperar atrás das divisórias de madeira ao lado da caixa
registradora. As pessoas que já haviam pegado suas bandejas de comida
erravam entre as mesas à procura de um lugar onde pudessem se espremer ou
de uma vaga prestes a surgir, mas não havia lugar. A algazarra dos pratos,
cadeiras, vozes, do arrastar de pés e o pra-a-que-pra das borboletas no salão de
paredes desnudas pareciam o rumor de uma única grande máquina.
Therese comia nervosamente, com o livreto de “Boas-vindas à
Frankenberg’s” apoiado no açucareiro. Ela lera o grosso livreto na semana
anterior, no primeiro dia do curso de treinamento, mas não tinha mais nada para
ler e sentia que no refeitório dos funcionários era preciso ter alguma coisa em
que se concentrar. Por isso leu de novo sobre os brindes em forma de férias, as
três semanas de férias concedidas a quem já trabalhava quinze anos na
Frankenberg’s, e comeu o prato quente do dia – uma fatia acinzentada de rosbife
com uma bola de purê de batata, coberta com molho marrom, um montinho de
ervilhas e um pequeno copo de papel com rabanetes. Procurou imaginar como
seria trabalhar quinze anos nas lojas de departamentos Frankenberg’s e descobriu-
se incapaz de fazê-lo. “Quem tivesse 25 anos de casa”, dizia o livreto, “ganhava
férias de quatro semanas.” A Frankenberg’s também oferecia uma colônia de
férias, no inverno e no verão. Deviam ter uma igreja também, pensou ela, e uma
maternidade. A loja era organizada de uma maneira tão parecida com uma
prisão que, de vez em quando, sentia medo ao perceber que fazia parte daquilo.
Ela virou as páginas depressa e viu escrito em caracteres pretos garrafais,
estendendo-se por duas folhas: “Você corresponde ao padrão da Frankenberg’s?”.
Olhou para as janelas do outro lado do salão e tentou pensar em outra
coisa. No belo suéter vermelho e preto que vira na Saks e que talvez comprasse
para Richard, como presente de Natal, se não conseguisse encontrar uma
carteira de aspecto melhor do que as que já vira por vinte dólares. Na possibilidade de ir domingo com os Kellys a West Point, para assistir a um jogo de hóquei. A grande janela quadrada do outro lado do salão parecia um quadro
de – de quem mesmo? – Mondrian. Com a pequena seção quadrada no canto
dando para um céu branco. Sem a presença de nenhum pássaro que a invadisse
ou deixasse de invadir. Qual o tipo de cenário que se faria para uma peça passada
numa loja de departamentos? Ela voltara a si.
Mas a coisa é tão diferente no seu caso, Terry, dissera-lhe Richard. Você
tem certeza absoluta de que sairá dentro de poucas semanas. E as outras não.
Richard disse que talvez ela estivesse na França no próximo verão. Estaria.
Richard queria que ela fosse com ele, e na verdade não havia nada de fato que a impedisse de ir. E o amigo de Richard, Phil McElroy, escrevera-lhe que talvez
conseguisse arranjar um emprego para ela junto a um grupo teatral, no mês que
vem. Therese ainda não conhecia Phil, mas tinha pouquíssima fé na sua
capacidade de lhe arranjar emprego. Ela vasculhara Nova York desde setembro,
voltara a vasculhar algumas vezes mais, e não achara nada. Quem daria
emprego, no meio do inverno, a uma aprendiz de cenógrafa, mal entrada na
aprendizagem do ofício? Também não acreditava na possibilidade de estar com
Richard na Europa durante o próximo verão, sentada com ele nos cafés ao ar
livre, caminhando junto com ele em Arles, encontrando os lugares que Van Gogh
pintara, ela e Richard escolhendo as cidades onde parariam algum tempo para
pintar. Isso parecia menos real durante esses últimos dias em que ela trabalhara
na loja.
Ela sabia o que a incomodava ali. Era o tipo de coisa que ela não fazia
questão de contar a Richard. Pois a loja intensificava coisas que sempre a
incomodaram, toda vez que se lembrava delas. Eram os atos absurdos, as tarefas
sem sentido que a impediam de fazer aquilo que ela queria, que poderia ter feito
– aqui eram os procedimentos complicados em relação às bolsas, revistas de
casacos e relógios de ponto, que chegavam a impedir que as pessoas
trabalhassem com a eficiência de que seriam capazes –, a sensação de
isolamento de todos em relação a todos, de viver em um terreno totalmente
equivocado, de modo que o sentido, a mensagem, o amor, ou o apanágio,
qualquer que fosse ele, de toda a vida, jamais podia encontrar sua expressão.
Lembrava-lhe conversas à mesa, ou em sofás, com pessoas cujas palavras
pareciam pairar sobre coisas mortas e paradas e que jamais faziam soar corda alguma. E que quando a gente procurava tocar uma corda vibrante, nos olhavam
com a mesma máscara rígida de sempre, fazendo algum comentário tão perfeito
na sua banalidade que a gente sequer conseguia crer que talvez fosse um
subterfúgio. E a solidão, ampliada pelo fato de que na loja sempre se viam os
mesmos rostos, dia após dia, os poucos rostos com quem a gente poderia falar, e
jamais falou, ou jamais poderia falar. Diferente do rosto que passa no ônibus,
parecendo querer exprimir algo, que a gente vê só uma vez e acaba
desaparecendo para sempre.
Ela ficava pensando todas as manhãs, na fila do relógio de ponto no
subsolo, distinguindo sem querer, com o olhar, os empregados permanentes dos
temporários, como fora parar ali – respondera a um anúncio, é evidente, mas isto
não explicava o destino – e o que viria depois em vez de um emprego de
cenógrafa. Sua vida era uma série de ziguezagues. Aos dezenove anos, ela estava
angustiada.
– Você precisa aprender a confiar nas pessoas, Therese. Lembre-se disso
– dizia-lhe com freqüência a Irmã Alícia. E freqüentemente, bem
freqüentemente, Therese procurava pôr isso em prática.
– Irmã Alícia – sussurrou cautelosamente Therese, os fonemas sibilantes a
consolá-la.
Therese se endireitou de novo e pegou seu garfo, porque o garoto da
limpeza já vinha em sua direção.
Ela podia visualizar o rosto da Irmã Alícia, ossudo e avermelhado como
pedra rosada quando o sol batia nele, e o volume azul e engomado de seu busto. A
figura ossuda e grande da Irmã Alícia surgindo de um canto em um corredor, no
meio das mesas brancas de laca do refeitório. A Irmã Alícia em mil lugares,
com seus pequenos olhos azuis sempre a distingui-la entre as demais garotas,
vendo-a de modo diferente, Therese sabia, de todas as outras garotas, mas com
seus lábios rosados e descarnados formando a mesma linha reta de sempre. Ela
lembrava da Irmã Alícia a lhe entregar as luvas de crochê verdes, embrulhadas
em papel fino, sem sorrir, apenas dando-as diretamente a ela, com mal uma
palavra, no seu oitavo aniversário. A Irmã Alícia lhe dizendo, com a mesma boca
comprimida, que ela precisava passar em matemática. Quem mais se importaria
se ela passasse em matemática? Therese guardara as luvas no fundo de seu
escaninho de lata, no colégio, anos depois que a Irmã Alícia fora para a Califórnia. O papel branco murchara e silenciara ao manuseio como tecido
antigo, e mesmo assim ela não usara as luvas. Acabaram ficando pequenas
demais para usar.
Alguém mexeu no açucareiro, e o livreto apoiado desabou.
Therese olhou para o par de mãos do outro lado, mãos gorduchas, com
sinais de envelhecimento, mãos de mulher, mexendo o café, agora partindo um
pãozinho com trêmula intensidade, molhando gulosamente a metade no molho
marrom, idêntico ao do prato de Therese. A pele das mãos estava rachada, havia
sujeira nos sulcos dos nós dos dedos, mas a mão direita exibia um anel de prata
filigranado, bem visível, com uma pedra verde-clara engastada, e a esquerda,
uma aliança de ouro, e havia vestígios de verniz vermelho no canto das unhas.
Therese observou a mão a levantar o garfo cheio de ervilhas e não precisou olhar
para a cara para saber como ela seria. Seria igual a todas as caras das
cinqüentonas que trabalhavam na Frankenberg’s, marcadas por um sempiterno
pavor e exaustão, com olhos distorcidos atrás de lentes que os aumentavam ou
diminuíam, e faces empoadas de rouge que não conseguia abrilhantar a
inexpressividade subjacente. Therese não conseguia olhar.
– Você é uma garota nova, não é? – a voz era aguda e nítida no meio da
algazarra, quase uma voz cheia de doçura.
– Sim – disse Therese, erguendo os olhos. Ela se lembrava do rosto. Era o
rosto cuja exaustão a fizera enxergar todos os outros rostos. Era a mulher.
Therese a vira se arrastando pela escada de mármore abaixo, vindo do mezanino
por volta de seis e meia de uma tarde, quando a loja estava vazia, escorregando
as mãos pelos largos corrimões de mármore para aliviar um pouco o peso sobre
seus pés cheios de joanetes. Therese pensara: ela não está doente, não é
mendiga, apenas trabalha aqui.
– Você está se saindo bem?
E ali estava a mulher sorrindo para ela, com as mesmas rugas terríveis
sob os olhos e em volta da boca. Seus olhos agora até que brilhavam, pareciam
bastante afetuosos.
– Você está se saindo bem? – repetiu a mulher, pois aumentara a algazarra
de vozes e pratos em torno delas.
Therese umedeceu os lábios:
– Estou, obrigada.
Gosta daqui?
Therese assentiu com a cabeça.
– Acabou? – um rapaz de avental branco agarrou o prato da mulher com
um polegar imperioso.
A mulher fez um gesto trêmulo de anuência. Puxou seu pires de pêssego
em calda para ela. Os pêssegos escorregavam, como pequenos peixes viscosos e
alaranjados, pela borda da colher toda vez que esta se levantava, exceto naquela
em que a mulher conseguia comer.
– Eu fico no terceiro andar, no departamento de suéteres – disse a mulher
com uma insegurança nervosa, como se estivesse procurando dar um recado
antes que fosse interrompida ou que as separassem. – Vá lá em cima conversar
comigo um dia. Meu nome é Robichek, Ruby Robichek, cinco quatro quatro.
– Muito obrigada – disse Therese. E de repente a feiúra da mulher sumiu,
porque seus olhos castanho-avermelhados, por trás dos óculos, eram delicados e
interessados nela. Therese podia sentir seu coração batendo, como se tivesse
voltado a viver. Ela observou a mulher se levantar da mesa e observou sua figura
baixa e atarracada se afastar até se perder na multidão que esperava atrás da
divisória.
Therese não foi visitar a sra. Robichek, mas procurava por ela toda manhã
quando os funcionários iam entrando aos poucos no prédio, por volta de quinze
para as nove, e procurava por ela nos elevadores e no refeitório. Nunca a via,
mas era agradável ter alguém para procurar na loja. Fazia toda a diferença no
mundo.
Quase toda manhã, quando ela vinha trabalhar no sétimo andar, Therese
costumava parar um pouco para olhar um determinado trem de brinquedo. O
trem ficava isolado em uma mesa perto dos elevadores. Não era um trem
grande e bonito como o que corria sobre o piso nos fundos da seção de
brinquedos, mas havia uma fúria nos seus minúsculos e ativos pistões que os trens
maiores não tinham. Sua raiva e frustração na linha oval fechada mantinham
Therese hipnotizada.
Ahrr rr rrgh! dizia ele ao se atirar cegamente dentro do túnel de papel
machê. E Orr rr rr rrgh! ao sair.
O trenzinho estava sempre correndo quando ela saía do elevador de
manhã e ao acabar o trabalho de tardezinha. Ela achava que ele maldizia a mão que ligava seu interruptor todo dia. No solavanco de seu nariz ao dobrar as
curvas, nas loucas disparadas pelas retas, ela percebia a atividade inútil e
frenética de um senhor tirano. Ele rebocava três vagões Pullman com
minúsculas figuras humanas, cujos rígidos perfis apareciam nas janelas, depois
um vagão de carga aberto, com toras de madeira de verdade em miniatura, um
vagão de carga de carvão, mas não de verdade, e um carro breque que
estralejava nas curvas e se agarrava ao trem em fuga, como uma criança à saia
de sua mãe. Era como algo ensandecido na clausura, algo já morto que jamais
se cansaria, como as graciosas raposas de passos molejados no zoológico do
Central Park, cujas pisadas complexas se repetiam infindavelmente ao voltearem
nas suas jaulas.
Naquela manhã, Therese se afastou depressa do trem e seguiu adiante em
direção à seção de bonecas, onde trabalhava.
Às 9h05, a enorme seção de brinquedos começava a dar sinais de vida.
Retiravam-se os panos verdes das longas mesas. Brinquedos mecânicos
começavam a jogar bolas para cima e barracas de tiro ao alvo pipocavam
enquanto seus alvos giravam. A mesa dos animais da fazenda cacarejava e
zurrava. Atrás de Therese tivera início um ra-ta-ta-ta-ta cansado, batidas de
tambor do gigantesco soldado de lata que encarava energicamente os elevadores
e tocava tambor o dia inteiro. A mesa dos modelos e de artesanato exalava um
cheiro de massa fresca de modelar, que lembrava a sala de educação artística do
colégio, quando ela era muito pequena, e também uma espécie de porão no
terreno do colégio que os boatos diziam ser o túmulo de verdade de alguém, e
entre cujas barras de ferro ela costumava enfiar o nariz.
A sra. Hendrickson, gerente da seção, tirava as bonecas das prateleiras do
estoque e punha-as sentadas, com as pernas separadas, nos balcões de vidro.
Therese saudou a srta. Martucci, que estava em pé no balcão contando as
notas e moedas de seu malote com tanta concentração que só pôde retribuir com
um aceno mais acentuado de sua cabeça, que balançava ritmadamente. Therese
contou 28, 50 dólares de seu próprio malote, registrou-os numa tira de papel em
branco para botar no envelope dos recibos de venda e transferiu o dinheiro,
arrumado pelo valor das notas e moedas, para a gaveta de sua caixa registradora.
A essa altura, os primeiros fregueses já saíam dos elevadores, hesitando
um pouco com a expressão indecisa e um tanto espantada que as pessoas sempre demonstravam diante da seção de brinquedos, para depois tomar rumos incertos.
– Você tem bonecas que fazem xixi? – perguntou-lhe uma mulher.
– Eu quero esta boneca, mas com vestido amarelo – disse outra mulher,
estendendo-lhe uma boneca, e Therese se virou e pegou a boneca que ela queria
de uma prateleira do estoque.
A mulher tinha a boca e as bochechas parecidas com as de sua mãe,
reparou Therese, bochechas com pequenas marcas encobertas por rouge rosa-
escuro, separadas por uma boca descarnada cheia de linhas verticais.
– Todas as bonecas que bebem e fazem xixi são deste tamanho?
Não havia necessidade de técnicas de venda. As pessoas queriam uma
boneca, qualquer boneca, para dar de presente de Natal. A coisa se resumia em
se abaixar, tirar caixas em busca de uma boneca de olhos castanhos, em vez de
uma de olhos azuis, chamando a sra. Hendrickson para abrir uma vitrine com sua
chave, o que ela fazia a contragosto, quando se convencia de que determinada
boneca não seria encontrada no estoque, em descer a passagem atrás do balcão
para depositar uma boneca na montanha sempre crescente de caixas no balcão
de embrulhos, que vivia desmoronando, a despeito das vezes que os rapazes do
estoque vinham apanhar os embrulhos. Quase nenhuma criança vinha ao balcão.
Supunha-se que Papai Noel é quem trazia as bonecas, um Papai Noel
representado pelas caras estressadas e as mãos impacientes. E, no entanto, deve
haver uma certa boa vontade em todas elas, pensou Therese, mesmo por trás dos
rostos empoados das mulheres de mink e zibelina, geralmente as mais arrogantes,
que compravam apressadas as bonecas maiores e mais caras, as bonecas que
tinham cabelos verdadeiros e mudas de roupa. É certo que havia amor na gente
pobre, que esperava sua vez e perguntava baixo quanto custava determinada
boneca, sacudindo a cabeça com pena e indo embora. Treze dólares e cinqüenta
centavos por uma boneca de apenas 25 centímetros de altura.
– Podem ficar com ela – Therese gostaria de dizer-lhes. – É mesmo cara
demais, mas vou dá-la para vocês. Frankenberg’s nem vai notar.
Mas as mulheres nos casacos de pano baratos, os homens tímidos
encolhidos dentro de agasalhos surrados já tinham ido embora, olhando tristonhos
para os outros balcões enquanto seguiam de volta para os elevadores. Se as
pessoas tinham vindo por causa de uma boneca, não queriam nada diferente.
Uma boneca constituía um presente de Natal especial, quase vivo, a coisa mais parecida com um bebê.
Quase nunca havia crianças, mas de vez em quando surgia uma,
geralmente uma garotinha, muito raramente um garotinho, de mão firmemente
dada a um dos pais. Therese mostrava as bonecas que ela achava que a criança
gostaria. Teria paciência, e finalmente determinada boneca causaria aquela
metamorfose no rosto da criança, aquela reação ao mundo imaginário que era a
alma de tudo aquilo, e geralmente era a boneca que a criança levava.
Então uma tarde, depois do trabalho, Therese avistou a sra. Robichek em
um café do outro lado da rua. Therese quase sempre parava ali para tomar uma
xícara de café antes de ir para casa. A sra. Robichekestava nos fundos da loja, no
final do longo balcão curvo, molhando um bolinho na sua caneca de café.
Therese abriu caminho empurrando entre a massa de garotas, bolinhos e
canecas de café. Ao chegar ao lado da sra. Robichek, disse um alô no meio de
um suspiro, virando-se para o balcão, como se uma xícara de café fosse seu
único objetivo.
– Oi – disse a sra Robichek, com tanta indiferença que Therese se sentiu
esmagada.
Therese não ousou olhar de novo para a sra. Robichek. E, contudo, seus
ombros se roçavam apertados! Therese quase terminara seu café quando a sra.
Robichekacabou dizendo:
– Eu vou tomar o metrô para o Independent. Será que conseguirei sair
daqui? – estava com a voz cansada, diferente da que tivera no refeitório naquele
dia. Ela agora se parecia com a velha encurvada que Therese vira se arrastando
escada abaixo.
– A gente consegue sair – disse Therese, tranqüilizando-a.
Therese abriu caminho à força para as duas até a porta. Therese também
ia pegar o metrô para o Independent. Ela e a sra. Robichek se infiltraram na
multidão lenta na entrada do metrô e foram inevitável e gradativamente sugadas
pela escada de descida, como restos flutuantes pelo ralo abaixo. Descobriram
também que ambas desceriam na estação de Lexington Avenue, embora a sra.
Robichek morasse na 55
th Street, logo a leste da Third Avenue. Therese
acompanhou a sra. Robichek até a delicatessen onde ela foi comprar alguma
coisa para jantar. Therese poderia ter comprado algo também para o seu jantar,
mas por algum motivo se viu incapaz de fazê-lo na presença da sra. Robichek.
Você tem comida em casa?
– Não, mas vou comprar alguma coisa mais tarde.
– Por que não vem jantar comigo? Estou sozinha. Vamos lá – a sra.
Robichek terminou com um dar de ombros, como se isso demandasse menos
esforço que um sorriso.
O impulso de Therese de declinar polidamente durou apenas um instante:
– Obrigada. Gostaria sim – então ela viu um bolo embrulhado em
celofane em cima do balcão, um bolo de frutas como um enorme tijolo marrom
encimado por cerejas vermelhas, que ela comprou para dar à sra. Robichek.
Era um prédio como o prédio em que Therese morava, só que de pedra
escura, mais triste. Os corredores não estavam iluminados, e quando a sra.
Robichek acendeu a luz no vestíbulo do terceiro andar, Therese reparou que o
apartamento não era muito limpo. O quarto da sra. Robichek também não era
muito limpo, e a cama estava desfeita. Será que ela se levantava tão cansada
como na hora de deitar?, imaginou Therese. A sra. Robichek deixou-a sozinha no
meio da sala, enquanto seguia arrastando os pés em direção à quitinete,
carregando a sacola de compras que pegara da mão de Therese. Agora que
estava em casa, ela se permitia demonstrar o cansaço que verdadeiramente
sentia.
Therese jamais conseguiria lembrar como aquilo começou. Não
conseguia se lembrar da conversa logo antes, e a conversa não importava, claro.
O que aconteceu foi que a sra. Robichek afastou-se dela devagar, de modo
estranho, como se estivesse em transe, murmurando de repente, em vez de falar,
e deitou-se totalmente de barriga para cima sobre a cama desfeita. O murmúrio
ininterrupto, o sorriso desbotado de desculpas, a terrível e impactante feiúra do
corpo atarracado e pesado, com a barriga saliente, e a cabeça ainda inclinada a
olhar para ela tão polidamente, faziam com que Therese não conseguisse se
compelir a escutar.
– Eu tinha minha própria loja de roupas no Queens. Ah, uma bela loja –
disse a sra. Robichek, e Therese sentiu o tom de bazófia, começando a ouvir a
contragosto, detestando aquilo. – Sabe, vestidos com um V na cintura e
botõezinhos de cima a baixo. Sabe, de três, cinco anos atrás – a sra. Robichek
estendeu sem graça suas mãos rígidas em volta da cintura. As mãos curtas não
chegavam a abarcar nem a metade anterior dela mesma. Ela parecia muito velha na luz fraca que enegrecia suas olheiras. – Chamavam-se vestidos
Caterina. Lembra? Eu é que os desenhava. Saíram de minha loja em Queens.
Ficaram célebres, sim senhora!
A sra. Robichek deixou a mesa e foi até uma pequena mala encostada na
parede. Abriu-a, falando o tempo todo, e começou a tirar vestidos de tecidos
pesados e escuros, que ela deixava cair no chão. A sra. Robichek ergueu um
vestido vermelho-escuro com uma gola branca e pequeninos botões brancos que
formavam um V na frente do corpete estreito.
– Olha, tenho uma porção deles. As outras lojas copiaram – por sobre a
gola branca do vestido, que ela prendia com o queixo, a cabeça feia da sra.
Robichek se inclinava grotescamente. – Você gosta? Eu te dou um. Vem aqui.
Vem aqui, experimenta um.
Therese sentiu repugnância diante da idéia de experimentar um. Ela
gostaria que a sra. Robichek voltasse a se deitar e descansar, mas Therese se
levantou docilmente, como se não possuísse vontade própria, e se aproximou
dela.
A sra. Robichek segurou um vestido preto de veludo contra Therese, com
mãos trêmulas e prementes, e Therese percebeu de repente como ela atendia as
pessoas na loja, empurrando suéteres em cima delas de qualquer maneira, pois
não poderia realizar a mesma ação de maneira diferente. Quatro anos, lembrava
Therese, era o tempo que a sra. Robichek dissera que trabalhava no
Frankenberg’s.
– Prefere o verde? Experimente – e no momento em que Therese hesitou,
ela o deixou cair e pegou outro, o vermelho-escuro. – Vendi cinco para as garotas
na loja, mas te dou um. São sobras, mas ainda estão na moda. Prefere este?
Therese preferia o vermelho. Gostava de vermelho, especialmente de
vermelho-escuro, e adorava veludo vermelho. A sra. Robichek empurrou-a para
um canto, onde ela podia tirar a roupa e colocá-la em cima de uma poltrona.
Mas ela não queria o vestido, não queria recebê-lo de presente. Fazia-a se
lembrar das roupas dadas no orfanato, roupas de segunda mão, porque ela era
tida praticamente como uma das órfãs, daquelas que compunham metade do
colégio, que nunca recebiam embrulhos do mundo de fora. Therese despiu seu
suéter e sentiu-se totalmente nua. Agarrou os próprios braços, acima dos
cotovelos, e ali sentiu a carne fria e anestesiada.
Eu costurava – dizia consigo a sra. Robichek, com grande entusiasmo –,
como costurava, da manhã à noite! Empregava quatro costureiras. Mas minha
visão foi ficando ruim. Um olho cego, este aqui. Ponha o vestido – ela contou a
Therese sobre a operação no seu olho. Não ficou cego, apenas parcialmente
cego. Mas foi muito doloroso. Glaucoma. Ainda doía. Isso e suas costas. E seus
pés. Joanetes.
Therese percebeu que ela estava contando todos os seus problemas e sua
pouca sorte para que ela, Therese, compreendesse por que ela decaíra tanto, a
ponto de trabalhar numa loja de departamentos.
– Deu? – perguntou confiantemente a sra. Robichek.
Therese se olhou no espelho da porta do armário. Ele revelava uma figura
magra e longa, com uma cabeça meio estreita, cujo relevo parecia
incandescente, um fogo amarelo a descer até a barra vermelho-vivo, em cada
ombro. O vestido caía num drapeado reto até quase os tornozelos. Era o vestido
das rainhas dos contos de fadas, de um vermelho mais escuro que sangue. Ela
deu um passo atrás, puxando a folga do vestido nas costas, de maneira a ajustá-lo
a suas costelas e cintura, e devolveu o olhar dos próprios olhos castanhos no
espelho. Ela conhecendo a si mesma. Aquilo era ela, não a garota no vestido
xadrez desbotado e no suéter bege, não a garota que trabalhava na seção de
bonecas do Frankenberg’s.
– Gosta dele? – perguntou a sra. Robichek.
Therese observou a boca surpreendentemente tranqüila, cuja forma ela
podia ver nitidamente, embora não mostrasse mais batom do que se alguém a
tivesse beijado. Quisera ela poder beijar a figura no espelho e torná-la viva, no
entanto permaneceu perfeitamente imóvel, como um retrato pintado.
– Se gosta, fique com ele – instava impacientemente a sra. Robichek,
olhando de longe, a espreitar apoiada no armário, do modo como espreitam as
vendedoras nas lojas, enquanto as mulheres experimentam vestidos e casacos
diante do espelho.
Mas aquilo não iria perdurar, Therese sabia. Ela iria se mexer, e aquilo se
perderia. Mesmo se ficasse com o vestido, aquilo sumiria, porque era algo que
pertencia a um instante, àquele instante. Ela não queria o vestido. Tentou
imaginá-lo no seu armário, em casa, entre suas outras roupas, mas não
conseguia. Começou a desabotoar os botões para abrir a gola.
Gosta, não gosta? – perguntou a sra. Robichek, confiante como sempre.
– Sim – disse com firmeza Therese, confirmando.
Ela não conseguia desenganchar o colchete atrás da gola. A sra. Robichek
teve de ajudá-la e mal podia esperar para fazê-lo. Ela sentiu como se estivesse
sendo estrangulada. O que estava fazendo ali? Como acabou pondo um vestido
assim? De repente a sra. Robichek e seu apartamento eram como um pesadelo
que ela acabara de perceber que estava tendo. A sra. Robichek era a guardiã
corcunda do calabouço. E ela fora trazida ali para ser torturada.
– O que houve? Um alfinete te espetou?
Os lábios de Therese se abriram para falar, mas sua cabeça estava muito
distante, em um longínquo vórtice que dava para a cena no quarto terrível, mal
iluminado, onde as duas pareciam engajadas em um combate desesperado. E no
ponto do vórtice onde estava sua cabeça, ela sabia que o quadro de desesperança
era que lhe dava pavor, mais nada. Era a falta de perspectiva do corpo adoentado
da sra. Robichek e do seu trabalho na loja, de seu monte de vestidos na mala, de
sua feiúra, a falta de perspectiva que engolfava totalmente seu final de vida. E de
sua própria falta de perspectiva, de jamais vir a ser a pessoa que ela queria ser,
de jamais fazer as coisas que essa pessoa faria. Teria sido sua vida inteira apenas
um sonho, e seria aquilo realidade? Foi o pavor dessa falta de perspectiva que a
fez querer despir o vestido e fugir antes que fosse tarde demais, antes que as
correntes a cingissem e a tranca fechasse.
Talvez já fosse tarde demais. Como num pesadelo, Therese jazia no
quarto, na sua combinação branca, tremendo, paralisada.
– Qual o problema? Você está com frio? Está fazendo calor.
Fazia calor. O aquecedor assobiava. O quarto cheirava a alho e ao mofo
da velhice, a remédios, e ao cheiro metálico, próprio da sra. Robichek. Therese
queria se deixar cair na poltrona onde jaziam seu vestido e suéter. Talvez, se ela
se deitasse vestida com suas próprias roupas, não fizesse mal. Mas ela não devia
se deitar de modo algum. Se o fizesse, estaria perdida. As correntes trancariam, e
ela se uniria à corcunda.
Therese tremeu violentamente. De repente perdera o controle. Era uma
friagem, e não apenas medo ou cansaço.
– Sente-se – disse de longe a voz da sra. Robichek, vergonhosamente
entediada e desinteressada, como se estivesse muito acostumada a ver garotas se sentirem tontas no seu quarto, e, também de longe, seus dedos secos, de pontas
ásperas, apertaram os braços de Therese.
Therese lutou contra a poltrona, sabendo que sucumbiria a ela, e até
percebendo que era atraída por ela justamente por este motivo. Deixou-se cair
na poltrona, sentiu a sra. Robichek puxando seu vestido sob ela, mas não
conseguiu se mexer. Permanecia ainda, contudo, no mesmo patamar de
consciência, ainda tinha a mesma liberdade de pensar, apesar dos braços escuros
da poltrona avultarem sobre ela.
A sra. Robichek dizia:
– Você fica em pé demais na loja. É duro durante o Natal. Já passei por
quatro. Você precisa aprender a se poupar um pouco.
Descer a escada se arrastando, segurando no corrimão. Salvar-se indo
almoçar no refeitório. Descalçar os sapatos dos pés cheios de joanetes, como a
série de mulheres empoleirada no aquecedor do banheiro feminino, disputando
um pedaço do aparelho para forrar com jornal e sentar em cima durante cinco
minutos.
A cabeça de Therese funcionava com muita clareza. Era espantosa a
clareza com que funcionava, embora ela soubesse que estava apenas fitando o
espaço em frente e que não conseguiria se mexer, mesmo se quisesse.
– Você está apenas cansada, queridinha – disse a sra. Robichek, prendendo
um cobertor em volta de seus ombros na poltrona. – Precisa descansar, depois de
ficar em pé o dia inteiro e ter ficado em pé esta noite também.
Um diálogo do Eliot, dito por Richard, veio à cabeça de Therese. Não é
absolutamente isso o que eu quis dizer. Não é isso, absolutamente. Ela quis dizê-lo,
mas não conseguiu mexer os lábios. Algo doce e ardente veio parar na sua boca.
A sra. Robichek estava em pé diante dela, tirando algo de uma garrafa com uma
colher e enfiando a colher entre seus lábios. Therese engoliu docilmente, pouco
se importando que fosse veneno. Ela poderia ter mexido os lábios agora, poderia
ter se levantado da poltrona, mas não queria se mexer. Finalmente se estendeu na
poltrona, deixou que a sra. Robichek a cobrisse com o cobertor e fingiu dormir.
Mas estava o tempo todo observando a figura curvada a se mover pelo cômodo,
guardando as coisas da mesa, se despindo para ir deitar. Observou a sra. Robichek
tirar um grande espartilho de renda e em seguida um negócio com correias que
passava por seus ombros e descia até o meio das costas. Therese então fechou os olhos, apavorada, fechou-os bem apertados, até que o barulho de uma mola e um
longo suspiro e gemido indicaram que a sra. Robichek se deitara. Mas isso não
era tudo. A sra. Robichek estendeu o braço, pegou o despertador e deu corda nele
e, sem tirar sua cabeça do travesseiro, tateou com o relógio em busca da cadeira
de espaldar reto ao lado da cama. No escuro, mal deu para Therese enxergar seu
braço se erguer e abaixar quatro vezes, até o despertador encontrar a cadeira.
Vou esperar quinze minutos, até que ela adormeça, e então vou embora,
pensou Therese.
E por estar cansada, ela se crispou para controlar aquele espasmo, aquele
breve transe parecendo uma queda, que acontecia toda noite bem antes de
dormir, mas que anunciava o sono. E ele não veio. Assim, depois do que julgou
ser quinze minutos, Therese se vestiu e foi silenciosamente até a porta. Era fácil,
afinal de contas, simplesmente abrir a porta e fugir. Era fácil, pensou, porque na
verdade ela não estava fugindo de coisa alguma.

CarolOnde histórias criam vida. Descubra agora