1- Solidão

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Um vento forte e frio batia em meu rosto junto com as gotas de chuva que caiam do céu.
Meu moletom cinza e todas as minhas roupas ja estavam ensopadas, e eu não conseguia olhar para lugar nenhum além dos meus tênis pesados de água da chuva.
Apenas as minhas lagrimas quentes esquentava levemente meu corpo.
Eu lembro cada segundo daquele dia.
Tudo aquilo me traumatizou.

Mas não consigo pensar direito, não com tanto frio.

Angelita está do meu lado pulando em poças de água como se fosse uma criança, por mais que ela tenha minha idade. Ela é sortuda por poder usar regatas em qualquer estação do ano, e por seu cabelo não ficar ressecado e embaraçado por conta da chuva. Mesmo que ela também esteja molhada como eu, ela não sente frio.
Até porque ela está morta.
Pelo menos deveria estar.

- Cryzinha, por que você não pula nas poças comigo? Seu corpo vai se esquentar mais! - Ela para e pensa um pouco. - Se bem que eu não sinto frio igual você. Mas qual é? tenta! é divertido! Talvez te cure dessa tristeza eterna.

- Não fala comigo Angelita. Você sabe que ninguem consegue te ver. Vão achar que eu sou esquisofrenica. Conhece as regras né? - Eu tento mudar levemente de assunto. Não quero falar como eu ando triste ultimamente. Inclusive quando ela está comigo em público. Toda vez que estou fora de casa, eu me lembro dos meus antigos amigos...Sinto falta deles. A gente saia toda vez juntos.. Inclusive, todos nós amavamos pular em poças de água feitas pela chuva.

Eu tenho certeza que Angelita não perdeu esse costume.

- Você envelheceu bem, mas em questão de personalidade... - Ela sobe em cima de um muro estreito que...tecnicamente não é alto, e me acompanha enquanto ela se equilibra para não cair - A falta dos nossos amigos te causou isso?

- Cala a boca. Você sabe muito bem o que me causou isso.

Eu não gosto de ser grossa com ela. Até porque esse fantasma dela faz minhas noites de sono, e toda a minha infância depois do acidente, serem menos...vazias. Mas isso não significa que ela pode me lembrar disso toda hora.

Depois de uns 35 minutos eu chego na casa da minha mãe. Antes que eu coloque a copia da chave da minha mãe na fechadura - Caso ela passe mal eu tenho um metodo mais rapido de entrar do que arrombar a porta -Angelita passa pela porta como se fosse nada.
Eu abro a porta e Angelita está na minha frente com os olhos brilhando.

- SUA MÃE TA FAZENDO CHOCOLATE QUENTE! ENTRA LOGO!

Ela sai correndo pra dentro de casa, e eu só reviro os olhos. Ela é muito madura para a idade dela, mas por algum motivo ela gosta de me pertubar e agir como uma criança.

Não me leve a mal, ela morreu com 10 anos, mas ela cresceu. Ja perguntei pra Angelita antes, como caralhos ela passou de uma criança sem os dentes da frente pra uma mulher cheia de curvas e cabelo enorme?!

Bom, ela me disse que tem acesso as suas versões futuras.

Eu entendi isso muito bem quando ela usou sua versão idosa.
Juro que nunca vou esquecer daquele dia, nem se eu quisesse.
Achei ela idosa bem fofa, é como se ela fosse como aquelas velhinhas que faria biscoitos e leite quente para seus netos, fazer croche e te contar uma história sobre a infância dela antes de dormir.

Mas encontrar essa senhora no seu sofá as 4 da manhã no meio do escuro é aterrorizante.

- Mãe! pode trazer uma toalha para mim? - Eu grito para ela, primeiramente não quero sujar a casa inteira com água,Ja que nao é mais minha casa. segundo que não quero ver minha mãe gritando de medo porque tem uma toalha voando pela casa - Que seria a Angelita.

Depois de me enxugar, sento na mesa com minha mãe para tomar o tal do chocolate quente que ela fez, Tentei agir como se estivesse surpresa quando ela me contou.

- Olha filha, tenho que te contar uma coisa que eu ando pensando a um tempo. - Ela diz e deixa a xicara de chocolate quente de lado - Ela nem bebeu pra ser sincera..

Angelita se senta na cadeira ao meu lado, e começa a escovar os cabelos e tirar a água invisivel dele. Com o sorriso malicioso dela, eu ja sei que ela sabe o que minha mãe vai me contar.

- Filha, eu vou te levar em um terapeuta.

Eu automáticamente começo a engasgar com o chocolate quente. Eu tento impedir que minha mãe comecei a falar mais alguma coisa, mas...caralho, essa bebida realmente desceu pro lado errado.

- Você anda muito triste ultimamente, quase não sai da sua propria casa, deixa as televisões ligadas e fica falando sozinha...Eu achei que fosse necessário. Pelo menos foi o que eu vi quando fui ver seu apartamento pela primeira vez.

- Não mãe! Eu não preciso disso! eu ja to melhor! por favor!

Você deve estar pensando: Por que uma pessoa traumatizada como eu não deveria fazer terapia?
A resposta é: Eu não quero que ninguem mais saiba o que aconteceu com Angelita.
Ninguem precisa saber, eu não quero contar.
Até porque, a morte dela inclui o fantasma dela. Se eu falar que eu vejo o fantasma da Angelita dês dos meus 11 anos de idade, ou vão me internar em um hospício, ou vão me diagnosticar com esquisofrenia e vão me entupir de remédios.
Não sei qual é a diferença entre um psicólogo e um terapeuta, e qual pode me diagnosticar com isso. Mas qualquer um deles é capaz de inventar que eu tenho alguma coisa.

- Não tem essa de "Ja tô melhorando" ou "ja to melhor" Eu fui acreditando nessa mentira por anos! Por isso mesmo que eu te chamei aqui! Sua situação é preocupante, Filha!

Eu olho pro lado e vejo Angelita com os pés em cima da mesa, comendo pipoca, enquanto assiste todo o caos. Eu olho pra ela de canto. E ela da de ombros.

- Quer pipoca? é sério, consigo fazer outra. - Ela ri e eu olho sério para ela. - Que foi? não posso interferir em nada daqui. Quer que eu faça o quê?

Eu só ignoro.

- Mãe é sério, eu realmente to ficando melhor! eu to.. até trabalhando!

Tenti ignorar as risadas altas de Angelita ao meu lado.

- Mente menos Cryzinha.

Na verdade, eu realmente trabalho...
Pela internet. No caso, Angelita não acha que isso é um trabalho, mas portanto que eu ganhe dinheiro, eu considero.

- Eu não ligo, você vai fazer terapia. Nem se for por dois dias. Não dá pra continuar assim, Você não sai do estado de negação por causa daquela sua amiga!

Eu suspiro

- Eu duvido que meus amigos tenham saido dessa fase também...

- Ah, Falando nisso. Conversei com a mãe do Ben ontem, o irmão da sua amiga.

Eu sinto meu coração bater forte. Olho para Angelita, e ela não parece estar se divertindo tanto como antes. A pipoca que ela estava comendo ja não existe, e Agora ela está séria, prestando atenção na conversa.

- Como ele tá? Ja superou a Angelita?

- Ah...pobre menino... O coração dele ainda doi. Ele amava muito sua irmãzinha, Presenciar a morte dela deve ter sido doloroso pra mente dele.
Ben não consegue mais ver fotos ou escutar o nome dela, E disse que não quer mais te ver. Sabe... Você e aquela garotinha eram muito grudados, ela gostava muito de você! Eu via isso toda vez que ela vinha aqui em casa de buscar para brincar la fora.

- Huh...bons tempos. E as outras garotas? Fleur, Celeste, E a Magnolia?

- Apenas ouvi falar que Fleur ta estudando pra ser estilista e Celeste quer ser psicóloga e inclusive faz acadêmia. A tal da Magnolia... Nunca mais ouvi falar sobre ela. Mas enfim, nada do que você me falar ou me perguntar vai me impedir de te levar em um terapeuta.

Bom, por um breve momento, foi bom ter recebido novidades sobre meus amigos... Pelo menos eles ja superaram Angelita.
Eu solto um suspiro longo e faço sim com a cabeça. Não posso evitar essa coisa de terapia. Quando minha mãe coloca algo na cabeça, nada tira isso da mente dela. Mas sei que nada vai fazer eu superar ela.

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