O frio já não doía como de costume quando uma pequena menina atravessa escondida o domo térmico da capital de Brillia, a majestosa Mezzoglacce. Situada no meio de uma vasta planície em uma região do mundo castigada eternamente pelo mais rigoroso inverno, o povo de Brillia desenvolveu suas próprias formas de lutar contra o castigo interminável da baixa temperatura. Conhecida por ser uma tecnocracia, o povo vota a cada dez anos na corporação que apresenta os avanços tecnológicos mais significativos para a época. Um dos mais proeminentes era o Coração de Dragão, uma fornalha gigantesca que bufava no centro capital emitindo calor através de um complexo sistema de canos que permeava o subterrâneo. O mais recente, no entanto, foi o advento da organocita, um minério embutido com energia vital que era usado como combustível para a grande maioria dos equipamentos e artefatos mágicos do mundo todo, hoje sendo o principal material de exportação para o reino e razão pela qual a família Volkov se mantinha firmemente no poder. Com construções que remetem à uma época da Europa durante a primeira revolução industrial, em uma era de poluição, vapor e progresso desmedido, o centro da capital tinha um clima agradável para os mais abastados que viviam por lá, enquanto a circunferência da periferia pouco era protegida da carícia sádica do inverno. Além de servir como combustível, organocita podia ser refinada e usada como uma droga alucinógena com alto potencial de causar dependência química, muitas das áreas do subúrbio haviam sido fechadas pela segurança da cidade devido ao número crescente de viciados atacando os cidadãos de bem.
Com cerca de seis anos de idade, ela mesma não tinha certeza, havia parado de contar há muito tempo, a menina tinha longos cabelos castanhos, encaracolados e oleosos. Vestindo roupas que seriam mais adequadas como trapos sobrepostos para aplacar o frio, ela repousa uma mão sobre a barriga que reclama incessantemente por nem lembrar da última vez que tinha recebido comida. A menina respira fundo a umidade densa do ar, fita a própria mão, fecha os olhos e dá uma batidinha de leve na testa que a faz sorrir, então volta a caminhar arrastando um saco velho de arroz que parecia ter dentro algo pesado demais para ela carregar. Já era final da tarde quando ela avista seu objetivo: a entrada de um estabelecimento cuja vitrine era repleta de pequenos cristais cintilantes que hipnotizavam olhos desavisados com diferentes colorações. Ela assiste a uma mulher muito bem vestida saindo pela porta com um deslumbrante colar cravejado de cristais coloridos, certamente deviam ser as organocitas de que ela tanto havia ouvido falar. Fraca demais para se importar com o olhar enojado que recebe da mulher ao passar, ela entra na loja e imediatamente é recebida por um olhar desconfiado de um velho senhor que parecia não entender como ela havia chegado ali.
– Quem deixou essa indigente entrar no centro da capital? Onde estão os guardas? – Ele pergunta de forma retórica em voz alta, mas respira fundo e amansa um pouco o olhar na direção da menina maltrapilha. – O que você quer? Não temos pão velho, vá pedir comida em uma taverna antes que os guardas te peguem.
A menina abre a boca para responder, mas nenhum som lhe escapa os lábios. Medo. Era o que ela sentia de pessoas, era o que tinha sempre que recebia um olhar julgador apenas por ser quem ela é. Ela pensa em desistir como havia feito centenas de vezes ao longo da vida, mas desta vez ela precisava ser forte. Tomando coragem, ela se aproxima arrastando o saco pesado e o coloca na frente do homem, abrindo de leve e apontando dele para um dos cristais na vitrine. O homem chega a franzir o nariz e sentir as orelhas pegarem fogo ao perceber o que ela queria. Em questão de momentos, a porta do estabelecimento é aberta e a menina cai rolando pela neve fria, logo em seguida o saco velho é jogado com violência ao lado dela, fazendo-a soltar um soluço de preocupação e o abraçar como se alguém tivesse ferido seu bem mais precioso.
– Fora daqui! Pirralha imunda! Este não é seu lugar! Volte para a pocilga onde você vive antes que eu chame os guardas! – O homem braveja furioso e bate a porta de sua loja com violência fazendo até os vidros da vitrine tremerem.
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Contos de Brillia - Toquinho
NouvellesNo inverno brutal da região de Brillia, uma pequena menina maltrapilha anda pela cidade desviando de olhares preconceituosos enquanto arrasta um pesado saco contendo seu único tesouro. Lutando contra a fome e o frio, ela enfrenta a selva urbana em b...