(1442 palavras)
"Mesmo quando eu andar
por um vale de trevas e morte,
não temerei perigo algum,
pois tu estás comigo"Salmo 23; 4
15 de Maio de 1896
CharlottetownO cheiro forte da cúrcuma e da pimenta de Cayenne se espalhou pela casa da família Blythe. De frente para o fogão, de colher de pau na mão e avental atado, o Doutor vigiava a panela ao lume como se fosse um autêntico chef de cozinha. Graças à convivência com os Lacroix, a culinária exótica de Trinidad não tinha segredo para ele, que sabia como misturar com maestria os vários temperos, de modo a ressaltar o sabor de cada legume e raiz.
Batata doce, rabanete, cebola e gengibre regados com caldo de galinha bem apurado, eram a base da milagrosa sopa medicinal da Sra. Hazel Lacroix. Tudo tinha que ser muito bem lavado, picado e temperado, quarenta minutos de cozimento em fogo brando e voilá! Estava pronta uma refeição quente, deliciosa e acima de tudo revigorante, tal como Anne precisava.
A atmosfera na cozinha já não era preenchida pelo tilintar animado dos talheres polidos. O silêncio tumbal substituía as risadas genuínas que ecoavam durante a hora do jantar, e a mesa que sempre ostentava três pratos de porcelana muito bem recheados agora se encontrava vazia. Com a bandeja na mão, Gilbert adentrou o quarto onde sua querida esposa repousava, e ao ultrapassar o limiar da porta, notou a palidez que dominava o seu rosto fino. A tosse persistente que se tornara sua fiel companheira, havia minado a sua energia e os seus olhos verdes esmeralda, antes repletos de vitalidade e jovialidade perderam o brilho, ofuscados pelas asas negras de Azrael.
Um suspiro pesado antecedeu o sorriso que Gilbert se forçou a esboçar. A tentativa de manter uma fachada de normalidade falhara miseravelmente diante da realidade cruel que o apunhalava dias após dia. Sua esposa estava definhando pouco a pouco diante dos seus olhos sem que ele pudesse fazer nada para afugentar a ceifadora de almas. Os remédios já não faziam efeito e a cada nova rajada de tosse, gotículas de sangue carmesim salpicavam o lenço branco que Anne pressionava contra os lábios. Por mais que tentasse manter a compostura, o Dr. Blythe sentia a dor da impotência corroer as suas veias como ácido quente e revirar as suas entranhas.
- Meu amor, trouxe um pouco de sopa. Tenho a certeza de que vai ajudar. - Gilbert tentou manter a voz firme, enquanto se aproximava da figura débil da sua amada, mas a angústia escapava por entre as palavras benevolentes.
Anne, entretanto, deitada no leito conjugal, respondeu com um sorriso fraco, os seus lábios azulados ensaiando uma expressão serena quase resignada, que contrastava com a agonia que os seus olhos acinzentados denunciavam pela falta de ar.
- Gil, não adianta tentar me enganar. Estou ciente da gravidade da situação... Onde está a minha filha?
Apesar de toda a tristeza que sobrecarregava o ambiente, o bom doutor não pôde deixar de expressar um micro sorriso sincero. "Oh as mães! Só Deus sabe o que Ele pensou quando as criou!" Nenhuma outra criatura se preocupava com o bem estar da sua prole como uma mãe, principalmente quando o seu próprio corpo gritava por socorro.
O Dr. Blythe possuía toda a convicção de que o o amor materno era o único motivo pelo qual sua adorável esposa ainda não havia capitulado à vida. Colocando com cuidado a bandeja sobre a mesinha de apoio, ele se sentou na cama ao lado de Anne, e segurando a sua mão cadavérica, sentiu a frieza que a doença trazia para aquela pele outrora escaldante.
- Joyce está bem, Anne. Bash veio buscá-la esta tarde e agora eles devem ter chegado à estação de trem de Avonlea.
- Eu queria ter me despedido dela, Gil... Eu... Eu a ouvi chorar tanto, e isso me partiu o coração.
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Joy of Avonlea
FanfictionA vida de Gilbert Blythe, um talentoso médico de Charlottetown, vira de cabeça para baixo quando a sua querida esposa parte repentinamente, deixando-o com um coração destroçado e uma filha por criar. Sem outra alternativa, Gilbert regressa à sua ci...