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O bar mal iluminado dentro do Hazbin Hotel era um refúgio para quem buscava conforto nas altas horas da noite. Angel Dust, vestido com seu traje chamativo característico, entrou no bar com um ar de indiferença. O tilintar dos copos e o zumbido baixo das conversas criavam um ruído de fundo reconfortante.

Para surpresa de Angel, Husk, o demônio felino com uma carranca perpétua, ainda estava atendendo no bar. Ele ergueu os olhos do polimento de um copo quando Angel se sentou em um dos bancos.

— O que traz você aqui nesta hora ímpia?- Husk resmungou, servindo uma bebida sem esperar resposta.


Angel encolheu os ombros, com um sorriso brincalhão no rosto. 

— Parecisava apenas uma bebida antes de dormir, sabe? Além disso, não é como se eu tivesse outro lugar para estar.

Husk olhou para ele com desconfiança, mas continuou seu trabalho.

— Você geralmente não fica acordado até tão tarde. O que está incomodando você?

Angel hesitou, olhando para suas mãos por um momento antes de encontrar o olhar de Husk.

  — Tive um sonho estranho, eu acho.

— Sonho, hein? Quer explicar melhor?- Husk ergueu uma sobrancelha, a curiosidade rompendo seu comportamento rude de sempre.

Angel suspirou, passando a mão pelos cabelos brancos.

— Sim, era sobre... minha vida humana. Ou pelo menos, o que eu acho que foi minha vida humana.

O interesse de Husk foi despertado.

— Nunca tive esse tipo de sonho antes, não é?
— Nah, na verdade não. Foi estranho, como uma explosão do passado. Eu era alguém chamado Anthony, morando nos anos 40, envolvido em alguma coisa de máfia familiar.- Angel estremeceu, as memórias do sonho eram indescritíveis, mas assustadoras.

Husk encostou-se no bar, cruzando os braços.

— Anthony, hein? Parece um verdadeiro encantador. O que aconteceu nesse seu sonho?

Angel respirou fundo, tentando recordar o sonho da melhor maneira que pôde.

— Bem, Anthony entra neste novo bar na cidade, certo? É tudo chique e novo. E tem esse bartender, Viktor, que fala muito bem. Tivemos uma conversa que parecia... diferente.

Os olhos de Husk se estreitaram, seu interesse cresceu.

 — Diferente como?
 — Conversamos sobre a vida mas acabou sendo bem pouco... Eu parecia atrasado para algo.- disse Angel, com expressão distante. — Viktor parecia saber mais sobre mim do que eu. Era como se ele pudesse ver através de toda a merda que eu tinha feito.

Husk ergueu uma sobrancelha.

— Parece realmente alucinante. Você acha que isso significa alguma coisa?

Angel Dust encolheu os ombros, agitando os restos de sua bebida.

— Quem sabe? Os sonhos são estranhos, certo? 

Husk riu, uma rara demonstração de diversão.

— Sim, conte-me sobre isso. Se você quiser falar sobre isso, estou aqui.

Angel lançou-lhe um sorriso agradecido, aquilo foi uma brecha para si afinal achava que estava entupindo o homem com seus problemas.

 — Ta eu acho que quero falar sobre...


Flashback do sonho:

As estreitas ruas de paralelepípedos da Itália da década de 1940 eram mal iluminadas pelo brilho suave das lanternas que lançavam sombras longas e dançantes ao longo das paredes de tijolos desgastados. Anthony, um jovem alto e louro, com impressionantes cabelos loiros e traços um tanto afeminados, passeava pelas pitorescas vielas, seus olhos castanhos absorvendo o encanto da cidade histórica.

Enquanto Anthony navegava pelas ruas labirínticas, ele encontrou um novo estabelecimento – um refúgio no coração da vida noturna da cidade. A placa acima da entrada dizia "La Luna Nera" e um brilho quente e convidativo se espalhava pela calçada. Com a curiosidade despertada, Anthony empurrou a pesada porta de madeira.

Lá dentro, o ambiente era animado, repleto do murmúrio de conversas animadas e das melodias suaves de um quarteto de jazz tocando no canto. A fumaça pairava preguiçosamente no ar, lançando uma aura nebulosa que emprestava um ar de mistério ao espaço mal iluminado.

Anthony sentou-se no bar de mogno polido. O barman, Viktor, um homem de meia-idade com cabelos escuros penteados para trás e uma barba rala com costeletas proeminentes, cumprimentou-o com um sorriso conhecedor. Vestido com trajes típicos de bartender da época, Viktor exalava um ar de sofisticação e experiência.

—  Buonasera, Signore Anthony. O que posso oferecer para você esta noite?- A voz de Viktor era suave, um complemento perfeito para as melodias de jazz que flutuavam no ar.

—  Um uísque puro, por favor.- respondeu Anthony, acomodando-se na banqueta com uma graça que falava de uma educação refinada.

Enquanto Viktor preparava a bebida, Anthony observava a clientela diversificada. Homens em ternos feitos sob medida e mulheres em vestidos elegantes brindavam, suas risadas criando uma sinfonia de sons alegres. A atmosfera estava carregada de uma energia que sugeria segredos e promessas sussurradas.
Viktor colocou o uísque diante de Anthony, seus olhos se encontrando por um momento prolongado.

— Por conta da casa, Signore. Não é todo dia que temos alguém tão charmoso quanto você enfeitando nosso bar.

Anthony riu, levando o copo aos lábios.

— Bem, Viktor, você sabe como fazer um homem se sentir bem-vindo.

A noite se desenrolou com conversas que transcenderam o tempo e o espaço. Viktor e Anthony mergulharam em discussões sobre a vida. O barman parecia possuir um conhecimento estranho dos pensamentos mais íntimos de Anthony, uma habilidade que deixou Anthony intrigado e nervoso. Enquanto Anthony saboreava o rico calor do uísque em "La Luna Nera", a porta se abriu, permitindo que um grupo de homens barulhentos entrasse no estabelecimento. Os olhos de Anthony piscaram na direção deles, reconhecendo seus rostos com uma mistura de apreensão e cansaço. Ele suspirou, as rugas em seu rosto se aprofundando enquanto ele se preparava para o que poderia acontecer.

Os recém-chegados, vestidos com ternos feitos sob medida que expressavam elegância e ameaça, caminharam arrogantemente em direção ao bar, suas risadas cortando o jazz ambiente. Anthony sentiu um nó no estômago, uma tensão familiar se instalando no ar.


Com um suspiro resignado, Anthony virou-se em seu banco, os olhos examinando a sala mal iluminada. Ao avistar seus irmãos, Giovanni e Milena, envolvidos em um intenso jogo de escopa em uma mesa próxima, a expressão de Anthony suavizou-se. Scopa, o tradicional jogo de cartas italiano, era o passatempo favorito da família.

Ele se inclinou e os chamou, sua voz carregando uma mistura de urgência e preocupação.
 
— Giovanni, Milena, é hora de ir. Agora.

Giovanni, um homem de ombros largos e charme rude, ergueu uma sobrancelha, avaliando a situação. Milena, sua irmã mais nova, com uma graça que acreditava em sua força, ergueu os olhos das cartas com um olhar questionador.

— Problemas, Anthony?- Giovanni perguntou, estreitando os olhos enquanto avaliava o grupo que se aproximava.

Anthony assentiu, apertando a mandíbula.

— Os suspeitos de sempre. Precisamos sair antes que as coisas piorem.

Giovanni acenou com a cabeça em compreensão, sinalizando para Milena. Com um movimento rápido, ela juntou as cartas e o trio se levantou, deixando para trás os restos do jogo de cartas.
Anthony voltou-se para Viktor, o barman que se tornara um confidente inesperado neste sonho.

— Obrigado pela bebida, Viktor. Agradeço.

Viktor assentiu, seus olhos transmitindo uma compreensão silenciosa.

— Tome cuidado, Anthony. Se algum dia você voltar aqui, você sabe onde me encontrar.

Com um olhar final e demorado, Anthony juntou-se aos irmãos enquanto eles saíam do bar. O ar noturno os envolveu enquanto navegavam pelas ruas sinuosas, com os ecos das risadas e do jazz desaparecendo no fundo.

Ao desaparecerem nas sombras, a porta de "La Luna Nera" se fechou atrás deles, deixando Viktor sozinho no espaço mal iluminado, contemplando os mistérios que permaneciam na paisagem onírica entre o passado e o presente.


                                                                            Fim do Flashback.

— Ok isto foi realmente muito específico. Mas não acho que seja nada de mais, só sei lá... Deve sentir falta de estar vivo.- Husk comentou limpando um dos copos, ele não queria assumir de que tinha sentido uma familiaridade com os cenários que Angel falou.

— Você deve estar certo, deve ser só falta da vida mesmo... Obrigado por me ouvir Husk, você não é tão mala assim!- O pecador sorriu brevemente.

— Não force, Dust.- Husk bufou.

Quando Angel terminou sua bebida, ele não conseguiu se livrar da sensação de que o sonho tinha mais significado do que ele inicialmente pensava. Se despediu de Husk e se virou para subir ao seu quarto, estava tarde e ambos teriam que descansar. Mal sabia ele, as memórias de seu passado estavam começando a se desvendar, e a nebulosidade de sua existência demoníaca estava lentamente dando lugar a uma imagem mais clara dos pecados que o assombravam.

Shadows of the pastOnde histórias criam vida. Descubra agora