CAPITULO 1: Amelie

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   Minha respiração está entrecortada, a chuva cai sem piedade, ensopando minhas roupas e minha capa. As poucas pessoas correm em busca abrigo, mas eu continuo minha caminhada sem hesitar. Deixo para atrás as ruas da cidadela e adentro as primeiras ruas do Haoll. O contraste é gritante. Minutos atrás, a paisagem era de casas mais parecidas com barracos, bares e espeluncas; agora vejo majestosos casarões, teatros elaborados e uma praça reluzente, mesmo sem o brilho do sol.
  O relógio de uma loja marca 3 horas da madrugada, tenho apenas mais 2 horas da cobertura da noite.
  Enquanto apresso o passo, a rua das especiarias entra em meu campo de visão. Ainda posso sentir o aroma de canela e cominho no ar. Respiro fundo aproveitando o ar doce. Lembranças de uma época passada se projetam na minha frente: uma praça cheia de crianças, algodão doce rosa, um céu azul, uma morte rápida... tais lembranças vão embora tão rápido como vieram.
  A chuva dá uma trégua e com ela vem o silêncio noturno. Tenho a leve sensação de ouvir meu próprio coração batendo no peito. Uma batida, então nada. Duas batidas, nada. Três batidas, nada. Um ciclo harmônico sem fim.
  Paro quando finalmente vejo a casa. Isso se pudesse ser chamada assim, está mais para um mini palácio. Altas pareces carmim, pilares de quartzo e um jardim mais amplo que qualquer outro.
   Três andares de pura ambição.
   Analiso as construções por perto e decido por escolher uma à esquerda. Pelos vidrais é possível ver vestidos de festas, pequenas mesas brancas delicadas e vários e vários espelhos. Sem dúvidas, uma loja perfeita para tirar dinheiro de pomposas mulheres da corte.
   Começo a escalar. As luvas de couro ajudam no atrito irregular, e movo-me rapidamente. A cada minuto, o chão vai ficando menor e o vento mais forte. Como planejado, a cobertura do prédio vai proporcionará acesso à primeira varanda do segundo andar do casarão do Chanceler. Era tudo que eu precisava. Terminada essa última encomenda, estarei livre do meu acordo com Lorcan. Poderei ir com a caravana de amanhã à tarde, rumo ao  caminho do Norte, e assim voltar para os Taipan.
   Concentro-me e tomo impulso, deslisando para a varanda com um pulo silencioso, parando a dois metros da porta. Está tudo tranquilo, aparentemente nenhum sinal de pessoas acordadas lá dentro.
   O vidro da porta está frio sob meu toque, meu reflexo mostra um vulto ceifador da meia-noite. Percebo que, por ironia do destino o mauricinho não lembrou de trancar a fechadura antes de dormir. Sorrio pensando no pobre e descuidado Primeiro Filho; parece que o Chanceler terá que escolher outro herdeiro.
   Entro e começo a busca pelo quarto. Meus olhos passam cuidadosamente por cada parte do cômodo. Procuro possíveis ameaças, saídas caso algo dê errado e, é claro, a encomenda. E lá está ela, ou devo dizer, ele? Olhos fechados, peito subindo e descendo em uma respiração calma, parece estar dormindo profundamente, mas... algo chama minha atenção.
   Nem ouço meus passos enquanto vou até a cama. Lá na guilda costumam dizer que invés de andar, eu flutuo como um espectro. Então me torno um, não existe eu ou a noite, somos um só.
   Olho para o corpo adormecido. Para muitas garotas, ele pode parecer um príncipe saído de um conto de fadas; para mim, é apenas mais uma peça de tabuleiro deste jogo de poder.
   Sinto um calafrio devido as correntes de ar.
   Quando percebo, minha adaga já está em mãos. Uma maravilha de 22 dois centímetros, encrustada em pequenos rubis. Foi um presente de aniversário de 17 anos, que me presenteei enquanto a roubava de uma mansão. Uma pena que logo ficará com a lâmina igual às joias que a decoram... Porém, percebo que aqueles olhos não estão mais sonhando, agora me observam com uma atenção calculada. Uma combinação incomum, olhos do mais vivo azul com o olhar mais frio que a morte.
   Meus movimentos são ágeis e rápidos. Em um segundo estou pressionando a adaga em sua garganta enquanto uso a perna direita para mantê-lo parado. Seu último suspiro está muito próximo.
   — Quais são suas últimas palavras? – sussurro, encarando-o.
   O demônio de olhos azuis inclina a cabeça para cima e a lâmina cria uma fina linha vermelha. Uma única gota de sangue escorre por sua pele de alabastro. Entretanto, não há nenhuma outra relutância de sua parte. Ele fecha os olhos e suspira lentamente. Talvez esteja vendo aquele filme que as pessoas tanto falam que veem quando estão perto da morte, aquele com todos os momentos importantes da infância até a última respiração.
   Quando estou prestes a dar um fim a tudo isso, o Primeiro Filho volta a me encarar minuciosamente e, por fim, abre um sorriso perverso.
   — Já estava cansado de te esperar, Amelie.
  Essas são as últimas palavras que ouço antes de sentir uma faca também pressionando minha garganta.

Sussurros das Sombras: A Maldição do Reino Sem EstrelasOnde histórias criam vida. Descubra agora