Capítulo 1
HERÓI DA SUCATANo céu, para onde quer que olhe, o ar está tomado por uma densa camada de fuligem, no chão, a gélida névoa rasteira duela com a fumaça que emerge com frequência das inúmeras tubulações de cobre, a estrutura metálica chia como panela velha ao pegar pressão. Retiro a máscara e os óculos, sinto um breve alívio e enquanto limpo as lentes embaçadas, observo o cenário à minha volta: num deserto de rochas vulcânicas sem vegetação alguma, cavernas e edifícios em ruínas se tornam abrigo de andarilhos e sem tetos. Essa atmosfera confusa logo irrita a garganta, sou obrigado a recolocar o equipamento de respiração se não quiser sufocar até a morte.
Atravesso os portões do Vale do Lixo em busca de sucatas, algo que possa ter algum valor, ou no mínimo, ser reutilizado. Caminho entre montanhas de cacarecos de todo tipo, que foram aglomerados de qualquer jeito pelo caminho.
Atrás de uma pilha de entulhos, dois corvos disputam o olho de um cadáver cujo rosto se encontra desfigurado, não muito diferente do restante do corpo, desnutrido e envolto em trapos que exalam o cheiro pungente de carniça. A ânsia é inevitável e logo se estabelece com um embrulho no estômago. Dizem que mesmo as máscaras mais sofisticadas não filtram totalmente o ar, mas esta que estou usando e nada, não têm muita diferença, pois não me impede de inalar toda podridão que paira ao meu redor.
Noto um brilho vermelho preso ao pescoço do defunto, espanto as aves que relutantes, se afastam, uma delas arranca a órbita do bico da outra e foge triunfante, o grasnar irritante cessa ao se assomar com os ruídos externos.
A fina corrente de ferro se desfez quando puxei o pingente, a pedra era miúda, do tamanho de uma azeitona, mas sua beleza era incomum, nunca pensei que encontraria algo desse nível num lugar como este. Guardei na mochila e segui otimista. Hoje deve ser meu dia de sorte! Seria pedir muito encontrar mais um ou dois artefatos raros como este?
Após uma hora de busca sem muito sucesso, desisto de procurar e retorno com algumas peças inteiras o bastante para servir de troca no mercado. Na saída o ar parece mais denso que o normal, sob o casaco sinto a pele eriçar, minhas pernas vacilam e ajoelham contra vontade.
Não sei se devido a náusea repentina, ou por causa do ar poluído e da máscara defeituosa, mas tive a impressão de ver uma enorme sombra se mover dentro da névoa. Pisco algumas vezes, me escoro no portão e suspiro aliviado ao perceber que estava apenas delirando.
Aguardo um minuto antes de levantar, as vezes acho que passo tempo demais fora do abrigo, já até aprecio a tranquilidade mórbida dessa região desolada, será que eu devo me preocupar? Os pensamentos deturpados borbulham na mente até que o rugido de uma fera faminta cortou o silêncio e de repente aquela sensação familiar voltou mais intensa.
Forço os músculos a funcionar, então corro o mais rápido que posso na direção do acampamento, mesmo sem olhar para trás, percebo a criatura se aproximar, seus passos pesados reverberam no terreno árido. Ignoro o impulso de virar ao ouvir um silvo agudo e quando percebi já estava no chão, a dor que percorre o corpo é latente e se mistura com o medo no momento em que, enfim, encarei aquela coisa.
Não havia olhos, ou cabeça, como se as mandíbulas estivessem no meio do abdômen, debruçada sobre quatro patas e uma cauda dividida em tentáculos que sibilam como serpentes inquietas. Os batimentos assumem um ritmo acelerado que até então, eu desconhecia, minha vontade era fugir e não parar até despistar o monstro, mas a essa altura, o organismo não respondia mais aos comandos, como se a parte do cérebro que controla os membros estivesse temporariamente desconectada.
Ofegante e com a vista turva devido a hiperventilação, assisto imóvel, a fera preparar o bote, no instante que a criatura saltou, meu coração parou, e aquele, sem dúvida, foi o segundo mais demorado da minha vida.
Quando recobrei a consciência, haviam duas figuras novas, a primeira de aparência humana e tamanho mediano, a outra, uma máquina descomunal na forma de Águia, cuja estrutura complexa, era formada por placas de metal dispostas em camadas sobre engrenagens e pistões hidráulicos. Já ouvi boatos sobre os Cavaleiros da Elite, mas a sensação de vê-los em ação pessoalmente é surreal. A fera outrora imponente e aterrorizante, agora se encontra baqueada sob as garras enormes e metálicas da ave prateada.
––– Afinal, quem abriu as portas do inferno? ––– resmungou o guerreiro ––– olha só pra essa coisa horrenda!
Levanto com dificuldade apoiado a rocha mais próxima, o homem caminha em minha direção, a capa balança de um lado para o outro sobre a armadura que é feita do mesmo metal reluzente que compõe o corpo de sua Águia Gigante. Com o elmo pontudo e o cenho fechado, tenho a impressão de que está sempre zangado.
––– Este fim de mundo é perigoso demais até mesmo para uma criatura como você ––– num tom grave que soou como insulto ––– diga, rapaz. O que faz aqui sozinho e… ––– olha em volta depois me examina dos pés a cabeça ––– onde diabos está sua Dobra?
––– Não que seja da sua conta, e não é ––– retruco ––– eu não tenho uma, ao menos ainda não.
––– Você tem o que, uns 20 anos? ––– coçou a barba grisalha ––– se até agora não despertou, pode ser que nunca aconteça.Por mais que eu odiasse ouvir aquilo, não foi a primeira vez que me senti rebaixado por não ter uma Dobra. Desde que me entendo por gente, nunca apresentei sinal algum que indicasse o despertar, ao contrário de alguns conhecidos que mesmo na infância se tornaram um guardião. Dizem que a idade máxima é até os 18, bom eu tenho até o final do ano para descobrir se sou um fracasso como pensam, ou provar que todos estão errados a meu respeito. Como dizem: a esperança é a última que morre.
––– Caramba, às vezes esqueço que nem todo mundo possui o Dom ––– num tom leve como se quisesse amenizar o peso das palavras.
––– O que era aquela coisa? ––– mudo o foco da conversa.Antes que pudesse responder, atirei a bolsa sobre o ombro quando outra aberração surgiu sorrateira, e ao ver que a criatura se engasgava com a mochila de sucata, na mesma hora o cavaleiro sacou a espada e com a precisão de um chefe de cozinha, fatiou um a um os tentáculos do inimigo e continuou a mutilação até reduzi-lo a pó. Logo atrás, em desvantagem contra três monstros, sua Dobra bate as asas de forma majestosa, ao forçar as articulações e engrenagens para criar uma rajada de ar violenta e manter uma distância segura de seus captores.
A cena a seguir foi como assistir um espetáculo ensaiado de tal forma que cada movimento acontecia em perfeita sincronia. O homem lançou-se sobre a ave que girou de imediato para impulsionar seu ataque, e como uma flecha certeira atravessou a primeira criatura, evitou o par de garras que almejavam sua cabeça em seguida e então, a lâmina assume um brilho celeste que deixa breves rastros de luz cada vez que o guerreiro arqueia contra as bestas sanguinárias. Por fim, a ave se encarregou da última ameaça, que foi destroçada com uma ferocidade sem igual por suas unhas e bico mecânico.
Boquiaberto, pondero o que acabei de presenciar, com certeza era demais para assimilar, por um momento, me vi numa taberna cheia, todos atentos com olhares de expectativa enquanto recito sobre o dia em que lutei ao lado de um Guardião e sua Ave Prateada, os aplausos e gritos de bravura se vão quando uma voz interrompe meus pensamentos.
––– Parece que nem todos os rebeldes são inúteis ––– removeu os miolos da lâmina antes de colocar de volta na bainha presa a cintura.
––– A língua não cai se dizer um obrigado, sabia? ––– provoco com um sorriso torto.
––– Até onde sei, se eu não interferisse a tempo, você não estaria vivo ––– acariciou a Águia antes de montar em sua cela ––– mas se faz tanta questão assim, obrigado. De fato, poderia ser minha cabeça no lugar daquela bolsa.
––– Disponha ––– observo os achados do dia, retorcidos e espalhados numa gosma de monstro ––– A propósito, o que são essas coisas?
––– Não se preocupe, está tudo sob controle ––– tanto o guerreiro quanto sua Dobra acenaram como cortesia antes de alçar voo ao céu ––– o sol já vai se pôr, é melhor encontrar um abrigo o quanto antes.
––– Espera! ––– berrei em vão, pois àquela distância não me ouviriam mais ––– Você me deve uma mochila nova!Que figura. Abro um sorriso involuntário. Numa coisa ele tá certo, quando anoitecer fica impossível enxergar um palmo nessa neblina, então devo me apressar, pois o caminho de volta é longo e minha barriga já está roncando, acho que não preciso de sinal melhor que este para partir. Ignoro o nojo quando a substância nojenta gruda nas luvas ao apanhar as sucatas antes de seguir viagem.
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Dragão de Bronze
FantasyEle Não Tinha Nada Mas Mostrou Que Poderia Conquistar O Mundo!