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GABRIELA

Sempre amei viajar de avião, apesar de terem sido poucas vezes. A vantagem de morar na Europa é poder estar em qualquer lugar em apenas duas horas de trem, mas para esse trabalho, nos contrataram o serviço de avião para ida e volta e a estadia num hotel local, onde acontecerá a entrevista. Eu estaria mais empolgada se não tivesse desenvolvido um certo medo de alturas depois de assistir Sociedade da Neve. Agora qualquer avião me parece frágil.

-Eu nunca estive em Valência antes, dizem que as praias são lindas e que é impossível ficar no tédio por lá. -Camila me tira dos devaneios, está retocando o rímel.

-A entrevista é só amanhã, então podemos visitar alguns pontos ainda hoje, antes de escurecer.

-Não vai dar, eu vou entrevistar os produtores do filme no final da tarde, pra coluna do próximo mês. É por isso que estamos indo hoje. -ela termina e se vira pra mim, segurando meu queixo e levando o pincel na minha cara.

-Eu não quero. -tento me desvencilhar, mas ela insiste.

-Gabriela, vamos estar hospedadas no mesmo hotel que aqueles atores lindos. Seja mais vaidosa, pelo menos nesse final de semana... por mim?

A carinha de cachorrinho abandonado sempre me pega, por isso deixo ela me maquiar como se eu fosse uma boneca. Não sou contra maquiagem, mas tento mante-las em ocasiões especiais.

Depois de duas camadas de um rímel que eu nem queria, mantenho os olhos na janela, me vejo acima das nuvens do céu de Madrid, tento me lembrar que não estamos acima do perigo dos Andes. Consigo curtir o restinho do voo, mas é inevitável ficar triste pelos que não curtiram da mesma forma. Sociedade da Neve é o tipo de filme que te faz refletir por dias, e eu ainda estou aqui.

O pouso foi tranquilo, como sempre deveria ser, passamos pelos corredores largos do aeroporto, sorrindo, conversando sobre o último encontro catastrófico da Camila na semana passada. Estamos felizes e o voo já passou, me sinto sortuda. Estamos indo ao nosso próximo destino, o maravilhoso hotel Las Arenas, e vamos ter um final de semana tranquilo. Mantenho esses pensamentos com toda energia que tenho, o tipo de coisa que venho aprendendo sobre Lei da Atração.

Estamos aqui, e eu sou grata. Repito para mim mesma: vai ser um ótimo final de semana.

Agradeço em silêncio. Entramos no uber.

...

Quarenta janelas. É a quantidade que pude contar na parte da frente do Hotel, e apenas na parte da frente. Sem contar com as portas enormes de vidro e a escadaria que antecede a entrada. Se não fossem as palmeiras, iria jurar que estamos em frente à Casa Branca em Washington.

-Tem certeza que nossa estadia é por conta da agência, né? -pergunto para Camila sem tirar os olhos das grandes letras que soletram no alto LAS ARENAS. Meu salário não é ruim, mas eu não poderia pagar tão facilmente por uma estadia num lugar desses sem planejar semanas para isso, então é sempre bom certificar.

-É lindo, né? Você vai poder aproveitar muito mais do que eu. -ela diz num suspiro, é quase possível sentir o cheiro de melodrama.

Entramos pela porta giratória, dando de cara com uma grande recepção. Grande não, gigantesca, com o teto altíssimo e uma iluminação linda e natural que vem pelas janelas de vidro, refletindo todo o ambiente que cheira a gente rica, há um toque de eucalipto também, me faz ficar encantada por alguns segundos.

Deposito todo o peso dos ombros apoiando minha bolsa na mesa da recepção, deixando que Camila faça nosso check-in que está em seu nome. Me distraio com um folheto no balcão com todos os serviços do hotel, incluindo SPA e piscina aquecida na cobertura. A parte de trás do folheto é o mapa de Valência, tendo o hotel como ponto principal e os pontos turísticos em volta com pin vermelho acima de cada um.

-Ah meu Deus, eu já deveria estar na entrevista. -Camila praticamente joga no meu colo sua bolsa pesada, abrindo a mesma e tirando uma pasta. -Você leva as malas pro nosso quarto?

-Mas você trouxe muita coisa, eu não posso levar tudo sozinha.

-Eu confio em você, sei que vai dar um jeito. -Mal tenho tempo para protestar antes de ela se virar e correr para o elevador, me deixando com todas as malas.

Meu sonho é que Camila fosse mais organizada com os horários e compromissos, mas sua beleza e seu nome sempre compensam então ela nunca teve realmente um problema por conta disso. O que significa que sobra para mim carregar todas essas malas.

-Daniel irá ajudar a senhorita a deixar suas malas no quarto. -disse a recepcionista enquanto um rapaz coloca as malas no carrinho de bagagem.

É como se tivessem lido os meus pensamentos.

Agradeço e caminhamos até o elevador, onde ele segura o carrinho e uma prancheta.

-Cobertura. -ele sussurra para si mesmo enquanto aperta o botão.

-Hoje é meu primeiro dia aqui. -ele diz quebrando o silêncio.

-Muito legal. -é só o que consigo responder, não sou muito boa em conversa de elevador.

-Estou juntando dinheiro para a faculdade. -sorrio, e o silêncio continua por poucos segundos -Quero fazer medicina.

A porta do elevador é aberta depois do que pareceu ser muito tempo. Levo um segundo para admirar a beleza do andar. Os corredores são largos e o tapete segue o mesmo com uma estética em verde, antiga e muito bonita.

-Qual é o seu nome? -ele pergunta, mas ainda estou admirando o lugar mais bonito que já devo ter me hospedado. -Senhorita, seu nome para eu confirmar o quarto.

-Está no nome da minha amiga. Camila Romero.

-Romero, aqui. -ele sinaliza no papel. -É este mesmo.

Estou prestes a abrir a porta quando me dou conta que o cartão que a desbloqueia ficou com a Camila, e é claro que não pensei nisso.

-O cartão ficou com ela. -digo quase como um pedido de desculpa pela falta de atenção -Se puder olhar as minhas malas, eu posso ir correndo lá embaixo pegar a reserva.

Daniel balança a cabeça e sorri.

-Não se preocupe com isso, posso abrir com este aqui. -ele mostra um cartão branco que tira do bolso. -Ele abre todas as portas. Aí você pode pegar o seu cartão depois.

Meus ombros cansados de carregar as malas pesadas agradecem, e eu também. Assim ele faz, abrindo a porta e passando com o carrinho, deixando nossas malas uma a uma no chão. Ele fecha a porta depois de receber a gorjeta e eu fico sozinha... num quarto gigante.

Não é apenas um quarto normal, logo na entrada uma pequena mesa com poltronas aveludadas. Continuo andando até o centro do que parece ser uma sala, com uma iluminação fantástica e janelas enormes, um vaso com peônias destacam o ambiente. Me aproximo até a mesa onde se encontram e toco nas pétalas. Amo peônias, são as flores mais lindas que já vi em um mix de tons de rosa. Me permito sentir o perfume delas. Não poderiam ter feito escolha melhor.

Meus dedos tocam o corpo do vaso de cerâmica, e continuam até tocar num envelope, já aberto.

"É sempre uma honra recebe-los em um de nossos melhores quartos. Esperamos que aproveitem a estadia e não exitem em solicitar nossos serviços".

-Nossa, quanta formalidade. -digo para mim mesma em voz alta enquanto levo à boca um dos quadradinhos de chocolate ao lado do vaso. -O Sr. Rodrigues mandou bem, em.

Viro o envelope do outro lado.

"Para Matias Recalt e Francisco Romero"

Romero.

Cuspo o chocolate para longe. Que porra?

-Que porra? Mas que... merda! -largo o envelope na mesa a medida que me afasto dela e olho ao meu redor.

Daniel disse algo sobre cobertura quando estávamos no elevador, e olha só para esse quarto, nunca que seria o meu quarto. Como pude ser tão burra e desatenta? Os sinais estavam todos na minha frente.

Eu preciso sair daqui agora.

-Você não é do serviço de quarto. -escuto uma voz masculina logo atrás de mim, sinto meu coração parar por um segundo.

VENENO | Matias RecaltOnde histórias criam vida. Descubra agora