Capítulo um: Um tal de sobe e desce de ladeira

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A vida após a morte é um saco. Quando eu morri, parecia aqueles filmes espíritas que estavam na moda um tempo atrás. Fugi desse tal de céu. Eu não queria reencarnar nem tão cedo. Quando eu descobri que dava para ficar vagando na Terra igual a essas almas penadas, foi o que eu resolvi fazer.

Tinha essa menina, uma tal da Júlia da Silva. Nome bobo né? Comum para cacete. Ela ficava me chamando de madrugada, parecia até aquele filme Invocação do Mal. Já passava da meia-noite e ela ficava ouvindo minhas músicas, conversando comigo. E eu podia ouvi-la, claro. Mas, não queria ficar dando trela. Eu gostava mais de observar.

Júlia era uma garota de dezenove anos e eu a acompanhava diariamente. Veja bem, eu poderia muito bem estar naquele exato momento lá no céu com Tom Jobim, Elis Regina, Cazuza ou qualquer outro "brother" meu, mas eu prefiro estar aqui ao lado dessa adolescente mal amada. A gente tem umas manias meio malucas né? Eu mesma era uma mulher cheia de manias quando estava em vida e pelo visto continuava até na morte.

Júlia era uma menina pretinha, de 1m65 de altura, com cabelos enormes e volumosos. Ela tinha mais cabelos do que altura.

Naquele dia ela estava chegando a Ouro Preto, em Minas gerais, pois tinha passado no vestibular.

Agora, você deve estar se perguntando - porque para você estar aqui lendo esta história, você deve ser outro desocupado - afinal, quem sou eu? Devo ser alguém que está desperdiçando o seu descanso eterno para narrar a história de uma menina de dezenove anos.

É provável que você me conheça: nesta encarnação, eu me chamava Laura Mendes. Muitos me consideravam um ícone da MPB brasileira, morri aos 75 anos de câncer de mama. Acontece. Por incrível que pareça, não tive câncer de pulmão, afinal, eu era fumante. Foi uma comoção, a mulherada realmente curtia meu som. Nunca vi tantas mulheres cantando juntas como quando cantavam as minhas músicas.

Eu fui a voz de gerações de mulheres.

E talvez, por isso, a Júlia despertou a minha curiosidade. Ela era diferente.

Eu estava com ela em um táxi em uma tarde - essa coisa de ladeira me deixava nauseada quando eu estava viva, mas ela parecia estar acostumada com o balanço do carro. A gente subiu e desceu pelo menos umas cinco ladeiras desde a rodoviária até chegarmos à república estudantil onde ela iria morar.

Se ela sonhasse que eu estava ao lado dela naquele momento, ou pelo menos nas últimas 10 semanas, ela teria um treco, mas, na religião dela, as pessoas acreditam que quando morremos, dormimos eternamente até o juízo final. A última coisa que eu fazia naquele momento era dormir. Não tem como dormir depois de morto. E ainda chamam isso de descanso eterno.

Júlia foi descendo com dificuldade, por conta da bagagem, e carregou as malas até a portinha estreita daquela casa antiga. Havia duas meninas sentadas num banquinho ao lado da república. Em cima da porta, numa plaquinha pendurada, onde estava escrito "República das loucas – Desde 1987". Era uma república só para mulheres, mas também só assim para os pais da Júlia deixarem ela morar fora de casa. Só espero que eles não estejam achando que porque era uma casa de mulheres que seria igual a um convento, até porque só de ver a carinha delas já dava pra ver que pelo menos um porre já tinham dado na vida.

— Tá precisando de ajuda, menina? — Uma voz grave a profunda, porém feminina, havia dito aquilo, era uma das garotas. A outra estava de fones de ouvido e com a cara enfiada no celular.

— Ai, obrigada. — Júlia estava toda sem graça, adoro quando ela ficava sem graça. Na maioria das vezes ela gostava de bancar a grandona e autossuficiente, raramente aceitava ajuda.

Ovelha Negra [COMPLETO]Onde histórias criam vida. Descubra agora