Capítulo oito: A erê borboletinha

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O que estava me matando nessa história de Júlia e Ana é que as duas não estavam namorando, ainda.

Onde estão as sáficas que iam morar juntas no segundo encontro?

Não fazem mais mulheres que amam mulheres como antigamente.

Já era segunda-feira e Ana tinha adotado um gatinho, ele se chamava Felix e era todo pretinho, uma graça. Júlia estava na casa de Ana lendo um livro e fazendo carinho no bichinho. O chefe de Júlia tinha viajado para BH e a deixou de folga, adiantando seu pagamento.

Já eram seis da noite quando Ana falou:

— Caraca, esquecemos da gira!

— Ih, verdade. — Júlia pegou a ecobag dela que estava em cima da escrivaninha, Ana colocou comida para o gato e saiu só com o celular e a carteira. Realmente, existem dois tipos de pessoas no mundo.

As duas quase saíram rolando ladeira abaixo várias vezes, enquanto corriam em direção à tenda de umbanda. Não sei porque tanta pressa, chegaram lá e ainda conseguiram ser as primeiras a colocar o nome na lista.

Júlia nunca tinha visto o início de uma gira, visto que, quando chegou ao terreiro na semana anterior, ela já havia começado.

Ela se defumou pela primeira vez, viu os médiuns baterem cabeça no congá, viu Ogum em terra, e, por fim, as crianças.

E que bagunça gostosa de se ver: era bolo voando de um lado, bala voando pro outro, médium correndo com chupeta na boca, gente que sairia dali mais fértil do que nunca, porque aceitou presente de erê. Era uma maravilha!

— Júlia da Silva. — Ouviu a cambone, que era quem auxiliava os médiuns, chamando o público. Ela foi até o congá e indicaram uma médium para falar com ela. A criança estava brincando com massinha de modelar e comendo jujuba, enquanto tinha um pirulito na boca.

— Oi, tia! — A voz fina saiu ainda mais engraçada com um pirulito na boca. — Eu quero falar com você e com a sua namorada.

Júlia chamou Ana, que estava rindo, ela tinha ouvido tudo.

— A tia ainda não namora a outra tia. — Ana corrigiu a criança.

— Ainda? Por quê não?

— Ah... A tia não pediu ainda.

— Por quê não? — Criança sempre foi um negócio complicado. Até as desencarnadas eram capazes de dar uma trabalheira para a gente. Tá maluco! — A tia tem vergonhaaaaaa!

As duas começaram a rir de nervoso.

— Não é isso. — Júlia tentou se explicar.

— É o quê, então? Uma tia gosta da outra tia. — Adoro que, essas crianças, elas sabem muito bem como fazer qualquer um passar vergonha, estava mais que na hora dessas duas se assumirem, e ficavam de palhaçada.

Nada melhor que um bom erê pra dar ordem.

— Tá bom, qual seu nome? — Ana já estava acostumada, então, era melhor ela adiantar o lado dela antes que a criança saísse pelo terreiro fazendo as duas passarem vergonha.

— Borboletinha.

— Borboletinha, posso pedir ela em namoro aqui? — A criança tirou o pirulito da boca e acenou positivamente com a cabeça.

— Júlia, você quer namorar comigo? — Júlia, se não fosse negra retinta,estaria vermelha igual a um pimentão.

— Quero.

— Aêêê! — Gritou a criança, que estourou um balão de ar, que surgiu não sei de onde. Fiquei feliz pelas meninas. Elas se conheciam há mais de um mês, e, por mais que só estivessem ficando há três semanas, aquilo era um passo incrível da nossa heroína. — Agora, bebe isso aqui.

Borboletinha deu um copo com guaraná, marshmallow e pirulito.

Uma bomba de açúcar abençoado. Saravá!

As duas beberam e Júlia ousou perguntar.:

— O que é isso, Borboletinha?

— Remédio pro coração.

***

Ana e Júlia voltavam da gira rindo, lembrando de como foi conversar com as crianças.

Ana estava para deixar Júlia em casa, quando pararam na porta da República das Loucas e Sofia segurava as malas de Júlia na frente da casa, enquanto sentava na varanda.

— Ju, não fui eu e nem Mari, eu juro. — Júlia, Ana e eu entramos em pânico. Júlia passou o dia fora de casa, e, quando voltou, estava sendo expulsa da República das Loucas.

— O que houve? Eu tô sendo despejada?

Sofia estava a ponto de chorar. Dava pra ver, em seus olhos, lágrimas se formando. Apesar de ser curta e grossa, Sofia era uma garota legal e não queria que isso estivesse acontecendo.

— Sim, eu não deveria estar te falando isso, mas, o Jorge, da Inconfidentes, saiu inventando pro Senhor Juvenal, dono da república deles, que você estava trazendo Ana aqui, pra transar no nosso quarto. Isso chegou na Dona Mercedes e ela mandou você ir embora.

Inacreditável.

Realmente inacreditável.

Eu disse, lá no início, que esse menino não ia deixar barato.

Eu acho incrível como homem hétero tem uma mania séria de ferrar os outros simplesmente por ter um ego fraquíssimo. Eu, sinceramente, acho que ele poderia enfiar o orgulho dele no cu, ao invés de ferrar a vida alheia.

A menina ainda era virgem! Como que ela poderia estar trazendo Ana para transar, aliás, a Ana morava sozinha! Como que ela poderia? Eu estava revoltada com isso.

Também era difícil acreditar que não tinha dedo de Mariana nisso.

Mas, se Sofia estava dizendo, eu acreditava.

— Cara, isso não faz nem sentido, eu...

— Calma, Ju. — Ana abraçou Júlia, que chorava sem parar. Sofia acabou chorando também, porque ela se apegou à presença silenciosa de Júlia. — Você fica lá em casa, não tem problema.

— Não é o medo de ficar sem lugar, mas sim pelo fato de que é absurdo dizerem isso de mim. — Sofia abraçou Júlia e Ana ao ouvir aquela frase. Dona Mercedes, aparentemente, não acreditou nas palavras das meninas. O preconceito falou mais alto.

— Vai dar tudo certo, Ju. — Disse Sô, passando a mão nas costas dela. — A gente vai reverter isso.

— É, vai sim. Você vai morar comigo. — Júlia fungou e não disse mais nada. Algumas guerras a gente não luta, porque já sabe que vai perder. Ela pegou as bolsas e saiu andando com Ana, até a casa dela.

Nem sempre a gente ganha o tempo todo.

Ovelha Negra [COMPLETO]Onde histórias criam vida. Descubra agora