Assim que eu atravessei a porta do quarto das meninas, dei de cara com uma senhora idosa, negra, com a aparência bem cansada, sentada na cadeira de balanço da sala.
— Suncê saiu porque não queria ver as fia fazendo bobagem? — A velhinha puxou um café e bebeu.
— É... A senhora é quem mesmo?
— Mãe Cambinda, zifia; eu sou a nega véia da Júlia. — Ela tinha um sorriso doce, como uma vovó que acabou de fazer uma broa e colocou café pros netos.
— Ela sabe disso? — É uma pergunta importante de ser feita, visto que eu não tinha visto nenhum guia da Júlia até agora. Só os guias do terreiro que elas frequentavam.
— Não, mas em algumas luas vai saber.
— Ela vai receber espírito, dona? — A senhora somente assentiu e me convidou para sentar na frente dela. Me ajoelhei aos seus pés e ela segurou meus pulsos.
— Eu que deixei suncê entrar na vida dela, suncê num tava pronta para os otro desafio da vida espiritual ainda.
— Como assim, senhora?
— Suncê tava muito presa a carne, zifia. Só queria saber de fazer fofocador com a vida dos vivo. Mas a espiritualidade num dorme, cê pode não querê, mas nois bota suncê pra trabaiá. Enquanto as minina se diverte, o que suncê acha de ir visitar a sua viúva? Ela também sente sua falta.
***
Num piscar de olhos, eu estava no meu velho apartamento no Rio de Janeiro, localizado em Ipanema. A casa já não tinha quase nada. Soraya aparentemente estava de mudança.
Fui andando até o quarto lentamente.
Ela estava no telefone, conseguia ouvi-la falar, mas não conseguia entender. Quando passei pela porta, pude vê-la e ouvi-la melhor.
— Laurinha estaria tão feliz de receber uma notícia dessas, filha. — Ela se referia a minha filha, Alice, que, quando morri, estava se formando na faculdade. Soraya também chamava Alice de filha, visto que ela foi criada por nós.
O pai pouco importa. Família não é só sangue, e sim coração.
De longe, conseguia ouvir a voz da minha filha.
"Mãe Sô, eu sempre fui o oposto da mãe Laura".
E era verdade, Alice não quis se enveredar para a arte. Coloquei ela na aula de violão, na aula de dança, na aula de teatro, na aula de pintura e na escrita criativa.
Mas ela tinha gostos peculiares.
Alice se formou em medicina.
— Mas sua residência em oncologia também traria felicidade a ela.
Eu me lembrei da nossa última conversa, ela desesperada enquanto eu entrava na UTI por conta do câncer, que estava dando metástase para os ossos de forma agressiva.
Eu já não pedia para viver mais, em minhas orações, só pedia que doesse menos.
"Será que eu vou conseguir salvar vidas? Eu não pude salvar a mamãe."
Foi então que minhas lágrimas começaram a brotar. Minha vontade era de abrir a boca e falar: "tá tudo bem, meninas. Eu estou ótima. Não dói mais.".
— Filha, sua mãe está vendo tudo isso. Não tenha dúvidas. Ela pode não ter conseguido sobreviver pelo diagnóstico tardio. Mas ela estará grata pelo bem que você fará ao próximo.
Nesse momento não me aguentei.
Caí no choro igual criança.
E de repente tudo ficou preto.
***
— Tá tudo bem, filha. — Quando eu subi o olhar, tinha uma mulher muito bonita, cabelos longos cacheados, pele negra, um vestido preto. A gente estava em um lugar diferente, era uma sala escura.
— Outro guia espiritual da Júlia? — Foi tudo o que eu consegui perguntar,enquanto tentava me recompor. Me levantei da posição fetal que estava.
— Sim. — Ouvi um leque estralar e olhei para cima de novo. — Maria Padilha Rainha das Sete Encruzilhadas ao seu dispor. A vovó é a chefe da cabeça dela, mas você responde diretamente a mim.
— Por quê?
— Porque você vai ser uma de nós quando sua missão acabar.
Nunca me imaginei sendo pombagira. E se você não sabe o que é pombagira, são mulheres que viveram à frente do seu tempo, para explicar de maneira bem superficial.
Mulheres independentes, sensuais, livres da submissão designada ao feminino.
Pombagiras são como Exu, mas no polo feminino.
— Eu me encaixo no requisito dessa vaga? Porque eu não me candidatei.
— Como você é modesta, Laura. Agora, vamos sair desse cubículo, já amanheceu para as meninas.
Quando a gente morre o tempo daqui não é igual o tempo de lá, porque eu ainda não estava acostumada com isso?
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Ovelha Negra [COMPLETO]
RomanceVinda de uma família fundamentalista cristã, Júlia busca uma vida normal como estudante da OFOP em Ouro Preto. Mas ao se mudar para a República das Loucas, um reduto feminino com história desde os anos 1980, ela se vê envolvida em um turbilhão de no...