Capítulo I

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Se empanturrar de sementes de girassol nunca havia sido tão enjoativo. Minhas mãos seguravam as cascas enquanto eu observei a chuva cair naquele início de manhã. A floresta parecia tão silenciosa quanto as minas abandonadas embaixo da montanha, mas nem tudo era o que parecia ser. Eu ainda podia ouvir camuflado pelo barulho da chuva os carros militares perambulando entre as árvores, buscando por qualquer um que fosse suspeito de conspirar contra aquela ordem de sossego que o prefeito exigiu naquela manhã em específico pelo simples prazer de que ele podia fazer isso. Calar nossas bocas dois dias antes da votação do novo organizador das contenções em cada distrito.

Dentro de casa, a velha enfermeira se lembrava das histórias de democracia antes da revolta contra o governo, contando para as crianças que a olhavam de maneira entediada, desinteressados em sonhar com um mundo em que não se havia risco de morrer  no meio das ruas por simplesmente carregar uma adaga ou uma faca de cortar pão, como aconteceu a dois dias com o filho mais velho da família Klaus. Ainda com tudo, a velha se levantou, dando um cascudo na cabeça de um dos meninos que dormiu durante a história, com sua voz rouca praguejando algo em uma língua tão antiga quando ela.

- Alexander. — Sua voz era áspera e suas mãos calosas. Ela não era corcunda, com o nariz curvado para baixo e uma verruga horrível na ponta. Suzanne era uma senhora magra, que fumou até os 58 anos, usava pérolas falsas e tinha um um gosto requintado para usar seus trapos sujos e ainda assim exibir um ar elegante. Ela era daquelas senhoras que exibia uma beleza angelical em sua juventude, mas acabou de tornando amargurada pelas dores da vida. — Saia da chuva, se ficar doente não temos remédios pra te ajudar.

- Os guardas estão fazendo ronda na floresta... Anne ainda não voltou, ela disse que ia atrás de alguma lebre. — Minha voz falhou no início da frase, eu não me virei para falar com Suzanne, mas ela ainda parecia estar diante dos meus olhos. Arrumando seus cabelos grisalhos para trás, respirando fundo pela minha insubordinação em não me mover como ela havia pedido.

- Se Anne saiu e estão fazendo ronda, ela será enforcada pela tarde. — Sua voz ficou fria, prestes a se engasgar com o nó que se formou em sua garganta. Anne era uma de suas filhas mais velhas, ex soldado da capital que foi mandada para casa sem o dedo anelar por ter socado a cara de um de seus comandantes. Anne era a pessoa mais sortuda que eu já havia conhecido, a única filha sobrevivente da família Gollio, herdeira do nada, como diziam quando a família era pobre demais.

— Ela vai voltar. Ela levou a arma e o distintivo de soldado. — Eu esmaguei as sementes em minhas mãos, o cenho franzido pareceu despertar o meu rosto que já estava ficando dormente por estar a tanto tempo com a mesma expressão vazia. — Eu vou atrás dela, não ouvi um único tiro.

- Vou ver você na forca pela tarde, ao lado da minha filha teimosa?

- Você é velha, não burra. Sabe que seria mais fácil a lebre nos matar do que esses soldadinhos. — Eu não sorri ou fiz menção a isso, mas Suzanne sorriu. Talvez pela minha essência de bravura, ou a minha estupidez em achar que eu poderia correr mais do que uma bala, mas ela sorriu como da mesma maneira que sorriu na noite em que eu e Anne conseguimos trazer um cervo para o jantar. — Deixe a lareira acesa, está frio aqui fora. - Disse a ela, pegando apenas um facão e meu casaco antes de sair, sem me virar para trás um único momento.

-

Caminhei em torno de seis minutos floresta adentro. Passos leves e rápidos, até que eu chegasse a uma pedra grande. Estava toda rabiscada por jovens que iam até ali fazer coisas ilegais e conversar em volta de uma fogueira, mas uma "pichação" específica naquela pedra havia me chamado a atenção. Um triângulo em vermelho, ainda escorria a tinha a medida que eu me aproximava, até que eu finalmente me desse conta de que a tinta era sangue. Sangue fresco, ainda viscoso e escorrendo pela pedra até o solo que parecia estar banhado, carimbado de um rastro que ia para a parte mais densa da floresta.

— Anne... - Sussurrei, mais como uma súplica, sentindo meu coração disparar em temor pela vida dela. Eu acelerei os passos, pouco me importando para o barulho que eu estava fazendo, só pensava nela, pensava em como as manchas de sangue sobre as folhas estavam ficando maiores, "muito sangue", pensava quase como um disco arranhado, repetindo isso a cada passo até que finalmente eu visse um pouco mais a frente, em uma área sem tantas árvores, uma figura robusta em pé, olhando para uma pessoa caída. Cabelos ruivos misturados em sangue, Anne... A figura robusta, por outro lado era um homem barbado, segurava a arma de Anne e sua mochila junto a uma grande lebre que estava morta, jogada em seu ombro. Imediatamente controlei minha respiração, meu corpo pulsava todo meu sangue e a descarga de adrenalina no meu cérebro me tornou rápido o bastante para correr e saltar em cima do homem antes que ele se virasse com a arma em meu rosto. Meu treinamento militar por sorte havia sido cravado em minha carne pelo general Harold. "Mobilize a arma do inimigo, soque a cara dele até que ele a solte pela desorientação do cérebro e em seguida o finalize", suas palavras eram claras a cada passo que eu seguia com certa beleza em meus movimentos, mas ao puxar o gatilho, ver os quatro buracos que eu fiz na cabeça dele e o sangue escorrer e se misturar a terra úmida me causaram náuseas, minhas mãos começaram a tremer mas de antemão a crise histérica por ter matado o primeiro homem da minha vida, eu me virei para Anne, rastejando até seu corpo imóvel, pude ver que ela estava fria, porém ainda respirava com a mesma força que sempre respirou. Eu voltei ao corpo do homem, vasculhando tudo o que pudesse ser útil até encontrar em seu pulso uma tatuagem que brilhava em dourado, no formato de um triângulo, foi quando a marca na pedra voltou a minha mente, um aviso de Anne achando que seria assassinada talvez, ela sabia que eu iria atrás do assassino e deixou o desenho? Não, o homem estava com a ponta dos dedos banhados em sangue, mas Anne tinha as mãos limpas. Qual seria o significado disso a final?

-

Quando Suzanne me viu chegar pela mata, a espingarda em suas mãos parecia inofensiva, seus lábios se entre abriram em surpresa e pude supor que seu primeiro pensamento naquele momento era que sua filha estava morta em meus braços. Eu entrei, colocando Anne na mesa e dando espaço para que Suzanne pudesse vê-la. A mulher mais velha, tranquilizada por ver que sua filha ainda respirava, imediatamente se apressou a pegar sua maleta de sua época de médica na soberania. Estava velha, surrada pelo tempo mas o símbolo estampado ainda era o mesmo, um triângulo dourado. Suzanne retirou um frasco de vidro de aproximadamente um litro, molhando um pouco de seu conteúdo em um pano e o aproximando no nariz de Anne, fazendo ela finalmente acordar em um salto, balançando seus braços desesperadamente tentando socar qualquer coisa ao seu redor, até que notasse estar em casa.

— Aí!... Que cheiro horrível... Minha cabeça...

— Encontrei você desmaiada na floresta... havia um homem... ele era um de nós, mas mesmo assim atacou você... - Expliquei.

— Ele não era um de nós, era infiltrado... um espião soberano. - Disse ela, tocando a ferida em sua cabeça. — Disse que estava procurando por pessoas com a mesma marca dele.

— Merda... — Praguejei em seguida, colocando a mão sobre o meu coração, sentindo as batidas quase me saltarem o peito.

— Se temos um soberano aqui, significa que nos encontraram... temos que ir embora. — Disse Suzanne, com sua voz rouca e amarga com aquela ideia.

— Pra onde? Acha que algum clã vai querer um bando de renegados pela trindade soberana?! Ninguém vai querer sujar o sangue conosco, Suzanne... - Anne estava com seu olhar opaco, parecia que sua esperança havia sido sugada pelo soberano... o que era comum de se ver em renegados.

— Vamos pela floresta... não podemos ficar e colocar a vila toda em perigo, ele nos aceitaram de bom grado. — Disse a ela.

— Pois é... essa tem sido nossa vida, não é? — resmungou Suzanne, guardando sua maleta e começando a juntar as malas. - Vamos ver se algum dos seus sonhos nos salva dessa vez, Aleksander.

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