Eu olhava para o bracelete grosso e brilhante no meu pulso. Estava gasto, mas a prata polida várias vezes guardava para si os arranhões e riscos brutos. Eu tinha muito apreço por aquele bracelete, mas nunca quis poupá-lo de nada e nem guardá-lo como algo meramente simbólico, não era uma lembrança, era um pacto, que estava firme e tão certo como no dia em que o fiz - pactos sofrem arranhões, perdem seu brilho, mas continuam lá. Em todas as situações desde que o recebi, lembro de ter o bracelete pendurado no pulso, sempre da mão esquerda, em todas as ocasiões nesses 17 anos, exceto em momentos mais íntimos, em que eu não precisava dele para me lembrar de quem me amava e torcia por mim.
Era um círculo simples e delicado feito de prata pura com um nome gravado na parte interior. O tamanho era menor do que o apropriado, considerando o estilo folgado da peça, mas foi escolha minha ter pegado esse. O nome de Hazel estava gravado no interior dele, e essa foi a parte que nunca arranhei ou deixei amassar. Nunca pensei em trocar por um adereço mais novo ou mais convencional que esse, como uma aliança, por exemplo; essas coisas eram normais, comuns, que têm apenas um significado geral atribuído a elas. No meu caso não, aquele círculo de prata tem um significado próprio. Por si só ele é especial e diferente. Olhar para ele não me lembra de matrimônios ou sinais mudos como que para afastar pretendentes, é mais que a união voluntária, é a fusão do ser.
Olhar para aquela peça me fazia repensar muitas coisas, uma delas era em como eu tinha mudado antes de receber o bracelete - como se de forma implícita eu tivesse feito tudo o que fiz por aquilo, o prêmio -, e em como eu me sentia comovido e satisfeito de estar com quem eu estava. No início eu não sabia lidar bem com a situação, não da forma que convinha, eu nunca fui jeitoso em se tratando de sentimentos humanos, apenas os meus próprios, que não eram sentimentos, e sim um punhado de emoções ambiciosas e egocêntricas. Mas eu não queria continuar assim, eu não queria ser mais eu. Eu queria ser outra pessoa, alguém que conquistaria a confiança dela, então eu precisei me desfazer de mim mesmo e me abandonar para que o enorme vazio antes preenchido pela minha vaga concepção de mim mesmo fosse agora recheado com a sensação de estar fazendo o que sempre quis; plenitude de ter alcançado o objetivo maior, que é fazer feliz.
Se Hazel agora é uma significativa parte de mim - indispensável- eu preciso fazê-la feliz para que o enxerto alegre em mim me faça satisfeito por completo, é bem simples. Parece egoísta, mas é preciso fazer o outro feliz porque sua própria felicidade depende disso. Não é autopreservação, isso ocorre quando se é cheio apenas de si mesmo, então se torna uma questão quase inerente à sobrevivência se fazer feliz - de formas hediondas, hedonistas, harmoniosas, honrosas, etc... Mas o amor é a autopreservação aplicada a duas pessoas, onde ambas fazem uma parte do outro feliz, pois não são mais elas habitando no próprio corpo, sentindo bater o próprio coração, mas sim a significativa parte alheia que deve ser amada para que se sinta completamente afortunado. Isso é um relacionamento.
Mas para mim foi difícil aprender a deixar outra pessoa sorridente quando meu riso custava o choro dos outros. Tudo porque a alegria de outras pessoas custou uma vez o meu choro, era o preço a ser pago, como todas as coisas, felicidade tem preço.
Entretanto, contrariando minhas expectativas, minha jornada instigante e desagradável, revoltante e viciosa através do labirinto político e ético - os muros desse labirinto eram morais -, somada à distância e o perigo que me separava de Hazel, fizeram despertar sentidos muito primitivos e aparentemente irracionais que estavam adormecidos dentro de mim. Dentre eles, posso citar que a forma ilustrada do método para remover uma parte de si próprio (e deixar ali um vazio avassalador até segunda instância), e a maneira menos equivocada de amar uma pessoa (como encontrar um transplante compatível com a personalidade que não pode ser mudada e como fazer com que esse transplante cumpra sua função no todo com eficiência e cortesia).
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Perturbações [original]
Historical FictionJohn, um homem decente de meia idade, professor conceituado em uma universidade de prestígio e escritor de plantão, parece ter tudo o que precisa para ser feliz ao lado de sua excêntrica esposa. Parece. Uma noite, Hazel chega cansada do trabalho e t...