O corpo morto do homem despencou desajeitadamente pelos degraus da escada branca de mármore parando no chão desnivelado e imundo das ruas comuns, sua faca foi arremessada para longe. Eu apertei os ouvidos, não me lembrava de um ruído tão alto assim, mas ninguém mais pareceu se importar, não houveram gritos, ninguém apareceu nas janelas ao redor, nem os curiosos, e era melhor assim. A carta na minha mão possuía respingos de sangue e eu sabia que meu rosto também, algo pegajoso escorria pelas minhas bochechas e algo venenoso corria em minhas veias: a maldade. Eu matei uma pessoa que não conheço sem nem pensar duas vezes, sem hesitação, friamente, sem estar irritado apesar de tudo o que ele me disse, foi um assassinato quase rotineiro, um treinamento simples. Imaginei por um instante como a mente de Edith deveria estar vazia para ela não guardar nenhuma emoção ou sentimento para quando se matou.
Abri e fechei a mão algumas vezes, sentindo um leve formigamento na ponta dos meus dedos e uma coloração carmesim parecida com a do céu depois de ter contemplado meu crime, havia sangue no meu bracelete também. Meu coração batia extasiado e eu ia aos poucos me acostumando com a sensação delirante e estimulante de matar alguém, era viciante, e a abstinência não mais era uma opção. O corpo morto do sujeito estava sobre uma poça escura de sangue bombeado diretamente do coração em seus últimos momentos; quase me senti mal, não de pena, de desperdício do meu tempo e sossego. Eu queria ajudar Hazel com os problemas da clínica, ajudá-la a superar uma morte, mais uma. Suspirei frustrado. Internamente, estava alegre e afetado pela sensação (desculpe o termo) obscena e atraente da morte, mas eu sabia que a parte minha que pertencia a Hazel estava contrariada e amedrontada, tentando com todas as forças se desvincular de mim, entretanto, já era tarde demais; o arrependimento não podia desfazer o que havia sido feito.
Conflitos internos sempre foram coisas palpáveis para mim, a moral ou a ética - ou nenhuma das duas; o bem e a tentação a fazer o mal por curiosidade; sadismo ou masoquismo; a melancolia e depressão; todas essas coisas gritando com suas vozes infinitas em suas palavras abstratas que queriam o controle de mim e dos meios ao meu redor. Já cedi a todas elas, não me arrependendo da maioria das vezes. Como dito anteriormente, isso considerando minha situação solitária e despreocupada com as coisas ao meu redor. Hoje eu me preocupo com as coisas ao meu redor. Se o meu mundo desabar, Hazel não estará salva, se eu me ferir ou ferir outros - isso já sendo uma realidade ao invés de hipótese - ela se fere também, o enxerto dela em mim vai lentamente entrando num processo quase irreversível de putrefação, até que não sirva mais para mim e eu o jogue fora. Esse é o fim de tudo.
Infelizmente tenho que admitir que há traços doentios em mim que nunca serão curados, não importa o que faça para mantê-los presos e acorrentados, silenciados ou adormecidos. Dentro de mim há um lago seco num terreno baldio, a lagoa das vontades no meio do terreno sem lei da consciência, onde reinam pensamentos intrusos e irresistíveis que criamos como armadilhas para nós. Essa bacia não espera a chuva de autocontrole da estação de calmaria para encher, mas ela transborda com sangue e mais sangue que vem das satisfações hediondas, das quais a que se destaca é a inclinação a matar. Nada é capaz de manter essas feras sedentas por matança quietas e contidas, eu não posso. "Fera sou para fera não ser", é a frase que define os eventuais acessos do nosso lado sombrio para que ele temporariamente se acalme e não decida se rebelar contra nossa natureza civilizada e tomar o controle de nós inteiramente.
Aí é que está, as aberrações destruidoras em mim estão em uma ociosidade perigosa, uma ressaca de anos, famintas e reprimidas durante esse tempo todo. Obviamente, elas se manifestaram sem a menor sombra dúvida ou margem para regressos, a poça de sangue, o zumbido nos meus ouvidos, o crepúsculo, todos testemunhas do breve despertar dos meus nêmesis. Ah, Hazel também. O homem calmo que sou está sendo vencido nessa guerra primitiva, tão antiga em mim quanto meu nascimento.
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Perturbações [original]
Historical FictionJohn, um homem decente de meia idade, professor conceituado em uma universidade de prestígio e escritor de plantão, parece ter tudo o que precisa para ser feliz ao lado de sua excêntrica esposa. Parece. Uma noite, Hazel chega cansada do trabalho e t...