03 - Ceifando uma Vida, Acolhendo outra

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Depois de toda a situação desagradável no hospital, foi decidido que eu responderia por esse suposto crime e pela morte de Paul -que eu achava que não precisava de nenhuma resposta-, eu matei e teria matado de novo, mesmo sem ele nunca ter feito nada comigo, porque eu sei que faria. Sobre o enfermeiro, só posso lamentar que ele tenha sido uma vítima da minha sombria e miserável, sanguinária e desgraçada existência. Me lembro do medo e da fúria escorrendo por seus olhos e umedecendo seu rosto negro; me pareceu fingindo, afinal ele tinha me atacado enquanto eu tinha um pesadelo histérico, sem ter essa comprovação de que eu era o assassino de seus pais. Ele tinha me estrangulado antes sem nenhuma razão além do prazer de se aproveitar de um paciente em estado de sonho. É tão sádico quanto qualquer sofrimento imputado a si mesmo.

Ficar todo aquele tempo deitado e meio adormecido na cama me fez perder a noção do tempo e das coisas, dos sentidos. Eu não sabia em que dia estava, as luzes artificiais, ainda que precárias e fracas, me impediam de saber quanto tempo se passara entre uma soneca e outra, um piscar de olhos e outro, os tormentos... até hoje não sei quantos foram. Mas uma coisa era certa, todo sábado, durante 5 semanas, Hazel vinha me visitar, e das cinco visitas, o jovem filho de Paul a acompanhou em quatro, começando na semana seguinte ao enterro do pai. Eu começava a contagem dos dias da semana a partir daí, mas era fácil me perder novamente, sempre foi. O garoto, que se identificou como Charles, me fez pensar que homônimos são péssimos e incalculados na mesma proporção.

Ele era um pouco retraído, mas como uma pessoa acamada não oferecia tantos riscos e Hazel é tão agradável que faz meus nervos desarmarem, ele lentamente se abriu como uma flor na primavera, ainda se deixando levar por seus devaneios promissores e distantes como o vento.

"A imaginação é uma benção e uma maldição", eu dizia, mas ele parecia tomar como um encorajamento; realmente impressionante e digno de uma alma que não conheceu o cativeiro mental e as correntes psicológicas, que adicionam peso a toda e qualquer atitude, por mais banal que seja, até que o peso seja demais e o encarcerado sucumba sob a sombra de suas fantasias póstumas.

Uma vez ele comentou que estava meio deprimido pela morte do pai, mas que não temia pela morte, e sim pela vida, de sua mãe mais especificamente. "Ela precisa do dinheiro ou algo assim?" Hazel perguntou, num sábado que parecia quente e ensolarado, enquanto eu escutava silenciosamente.

"Não", respondeu ele. "Mas acho que precisa de mim. Desde que meus pais se separaram, minha mãe insistiu para ficar comigo, mas meu pai não quis, achando que eu iria preferir as jóias ao comércio."

"O que sua mãe comercializa?"

Ele sussurrou alguma coisa, mas não entendi nada, esperei que ele falasse de novo. Hazel perguntou novamente e ele falou um pouco mais alto. "Pessoas, ela trafica pessoas."

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Eu não fui criado por pais ordinários e comuns, como pôde-se perceber até aqui, espero. Uma criança mal amada e anormal por si só é a maior dor de cabeça para educadores e familiares, mesmo que boa parte desse insuportável comportamento, nojento, seja responsabilidade deles mesmos. Mas, como ser criança tem regras, dentre as quais posso destacar a incredulidade obrigatoriamente depositada nelas, não seria eu o pioneiro no confronto de adultos estúpidos - como na época eu achava que eram. E até hoje, para falar a verdade.

Sempre é um termo exagerado, talvez seja melhor reduzir a magnitude dos fatos -e as expectativas sobre qualquer coisa boa também-, mas quase todas as vezes que eu questionava uma desgraça na minha vida, minha mãe me humilhava, e meu pai não fazia nada. Na visão dele eu estava apenas reclamando de uma vida boa demais para mim. E dizia que só seria feliz depois de ser completamente infeliz. O que é verdade. Depois do fundo do poço, a luz do sol seco e degradante passa a ser tão adorável que chega a aterrorizar; mesmo eu preferindo estar apodrecendo em um poço a ver essa maldita luz o sol todos os dias trazendo vitalidade, esperança e vigor para corpos moribundos que desejam a própria morte mais do que se pode querer qualquer outra coisa. Dentre eles destaco o meu corpo enquanto hospitalizado por conta de uma vingança miserável.

Perturbações [original]Onde histórias criam vida. Descubra agora