Anima Vestra

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- Meu deus... - a expressão saiu automaticamente. Pois a dor era insuportável, e seus nervos não mais aguentavam tamanha pressão - Eu vou morrer... eu vou. Agora. Eu sei... - lágrimas encheram seus olhos enquanto matutava naquela absoluta solidão, pesaroso, entristecido, e afirmava com toda a certeza - Eu sei. Todos morrem, e hoje sou eu.

Balbuciava diante uma poça de sangue..., seu sangue. Os dentes quebrados. A visão turvada, para sempre, pois haviam perfurado um de seus globos oculares após a última sessão de tortura, de raiva, por ele ter quebrado a máquina de choque.

A dor já não o incomodava tanto apesar de lhe esgotar absolutamente. Afinal já há mais de semana precisava respirar com as costelas quebradas. Ao menos não estava mais pendurado no pau de arara. Estava no chão, jogado feito um pano velho e encharcado. Era relativamente mais confortável, mas nenhum membro de seu corpo respondia aos comandos do cerebelo.

A tortura, o suplício, aquele tormento aterrorizante e nebuloso invadia a mente do jovem militante. Sua vida já havia passado inúmeras vezes diante dos olhos. A familia reunida, futebol, medicina, as leituras dos clássicos, a Selma e sua incomparável beleza, tudo o que pudera conhecer de genuinamente bom e gostoso. Não iria ter a chance de ver o desenrolar de sua mais gloriosa contribuição para aquilo que até mesmo os próprios abutres e parasitas, os quais diariamente o espacavam e o humilhavam já por muitos dias a fio, referênciavam como: a "humanidade".

Fora cedo que começou a se enfiar nos grupos de estudo de Alagoas. Rapidamente, unindo teoria e prática, acabou concebendo a realidade material como um ateu e reinvidicando a história dos povos oprimidos contra as classes opressoras como sua própria. Como sua ancestralidade, parte de sua formação, seu cérebro, seu coração, sua força, sua energia... Seu... - Espírito - ele sussurrou como um recém nascido, com o rosto sujo encostado no chão molhado em vermelho, tossindo - impresso no meu "espírito"?

Aquela palavra ficou ressoando. Tal como quando a empregou no documento que escreveu qualificando a delação dos camaradas como um ato equivalente a traição do movimento.

Da prática para a consciência e da consciência devolta à prática, né Lênin?

Só não teria mesmo a chance de por o que havia obtido em prática devolta para a teoria. Pensava no que poderia tirar daquilo tudo. Daquela experiência toda que havia passado, naquela prisão medieval ao lado da faculdade de direito; havia percebido por conta de um baladar de sino que ouvia distante de quando em quando.

Era certo que apesar da pouca idade era um cara muito sábio, focado na realidade objetiva, no agora, no movimento das coisas, na interligação e interpenetração dos contrários. Havia lido muitos livros, muita literatura ateísta, e nela fora capaz de encontrar razão nas críticas advindas dos "iluministas", daqueles que negaram historicamente a existência de um espírito transcendente, mas que aplicam o conhecimento sobre a essência e a libertação de uma substância mistica chamada "alma" ou "espírito". - ...Libera Anima Vestra... - chegou a dizer repetidamente por um tempo, feito um mantra. Era latim. Tinha lido em algum lugar o qual tentava custosamente recobrar. Em vão. Pois obviamente, dali, o conhecimento proveniente da resistência mais intransigente a todo o tipo de tortura, seria carregado para sepultura.

Foi nesse momento que os "humanistas" entraram na masmorra. Portavam porretes, como se ele fosse ainda oferecer alguma resistência. Não tinha como, mas também, mordera a língua na última vez que sentara na famosa "cadeira do dragão". Jamais iriam retirar suas informações.

Muito cientes disso, o ergueram da poça de sangue, e o arrastaram porta a fora conversando sobre algo que ficou inaudível ou ininteligível para o Galego. Tudo que seus ouvidos captavam com precisão naquela altura era um zumbido infindável. Certamente era como suspeitara: iriam dar um fim nele.

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