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Acordo num sobressalto, ao ouvir passos duros na escada. John acordou mais cedo que o habitual e não há nada preparado para o desjejum. Droga. Viro rapidamente para o encosto do sofá e finjo estar dormindo, está muito cedo e não quero ter que dialogar com ele agora – não sou boa em conversas matutinas. Ouço os passos dele seguindo pela sala em direção a cozinha, no exato momento em que o telefone toca.

— Alô! Isso — me pergunto quem possa ser.
— Sim! Consigo. OK, até – ele bate o telefone ao fim da ligação.

Me espreguiço, fingindo que acabo de acordar. Calço os chinelos que estavam ao pé do sofá e quando me viro, John está no batente da porta da cozinha me encarando. Penso que ele irá perguntar algo, mas ele ignora completamente o fato de ter me encontrado dormindo fora de nossa cama.

— Quem era? – pergunto enquanto passo por ele em direção a cozinha.
— Vicent, eles precisam que eu retorne mais cedo – ele se vira enquanto seu olhar segue todos os meus passos. — Saio daqui a uma hora.
— Ah – é tudo o que digo, não consigo fingir que estou decepcionada porque na verdade tudo o que quero é que ele não volte.
— Vai sentir minha falta? – ele pergunta enquanto me abraça por trás, meu corpo paralisa e sinto dificuldade em respirar.
— Claro – respondo por fim e ele finalmente me solta.

Preparo o café da manhã em silêncio enquanto John se prepara para retornar ao trabalho. Ele é tão barulhento que chega a incomodar. Tudo nele é incomodo.
Nos sentamos na mesa e comemos em silencio, tudo nessa casa é silencioso, menos quando não é. Talvez o silêncio seja a única coisa que me agrada.

Quando era mais nova, sonhava em ter uma casa cheia e repleta de barulho. Crianças correndo e alguém amável para dividir isso comigo. Me casar com John destruiu todos os meus sonhos, desde me formar em Artes quanto ser mãe. Fui perdendo um pouco a cada ano. Ele não concordava que mulheres na minha posição se envolvessem em assuntos supérfluos como arte, deveríamos apenas saber escolher e limpar um bom quadro, nada além disso. Me calei sobre isso, naquela altura ele já havia demonstrado seu lado agressivo, então eu estava sempre evitando qualquer assunto que o deixasse nervoso.
Depois de um tempo, enquanto frequentava a igreja aos domingos – puramente obrigada por ele e não por acreditar em algo – Vi uma moça, que tinha mais ou menos a minha idade, ela estava gravida do terceiro filho. Olhei para aquela barriga enorme e redonda, e depois para minha reta e vazia, e pensei em como seria. Como deveria ser ter algo tão lindo crescendo dentro de mim. Senti um nó bem no meio do coração, um vazio que eu nunca havia percebido que morava ali.
Foi quando notei que eu e John nunca havíamos conversado sobre. Tínhamos três anos de casados na época e o assunto nunca havia surgido. Mas era John que ditava as regras, todos os assuntos giravam a sua vontade e apenas. Então decidi tentar, talvez ele estivesse esperando o mesmo.
Não o queria como marido e muito menos como pai dos meus filhos, mas eu precisava me ajustar ao que era a minha vida e eu era sua esposa, e se tivesse filhos, seriam dele. Não acreditava que ele fosse ser um bom pai, afinal, ele nem bom ser humano era. Mas me agarrei ao egoísmo daquela vontade, eu queria ser mãe e isso bastava para me fazer iniciar o assunto.
Quando chegamos em casa naquele dia, preparei o almoço como sempre fazia e ele ficou jogado no sofá com um copo de whisky, não passava das duas da tarde quando nos sentamos a mesa. É engraçado, algumas coisas nos marcam de maneiras surpreendentes. Nunca vou esquecer daquela conversa e nem no que se seguiu após ela.

— John – falei quase em um sussurro enquanto deixei o garfo repousar na mesa e olhei em seus olhos.
— Sim? – perguntou ele sem desviar o olhar do frango assado em seu prato.
— Por que nunca conversamos sobre ter filhos? – ele desviou o olhar do prato e me encarou, senti como se fosse a primeira vez que ele estivesse me olhando, de verdade. Mas ao contrário do que acontecesse com as outras pessoas, eu odiei a sensação, o seu olhar raivoso em direção aos meus.
— Não temos sobre o que falarmos, Margot – ele falou enquanto dirigia o olhar em direção ao prato novamente. — Não teremos filhos.
— Na verdade, eu quero ter – eu disse, o medo indo para um lugar atrás da vontade e do desejo. — Não pode decidir isso por nós dois.

Aconteceu tudo muito rápido, ele se levantou, se ergueu sobre a mesa e puxou meu pulso em sua direção. Fiquei com metade do corpo sobre a mesa, sobre os pratos de comidas, sobre as panelas aquecidas. Sua mão apertando cada vez mais o meu pulso esquerdo. Seu olhar me encarando.

— Não teremos filhos, nunca. Você entendeu? – ele perguntou sem mesmo esperar por uma resposta. — Eu decido, eu escolho. Espero que não volte a falar sobre isso novamente – ele disse por fim, tudo doía em mim, o pulso, o corpo, a mente, o coração.

Ele largou meu braço como quem joga um papel de bala no lixo, de qualquer jeito e subiu as escadas pisando fundo. Fiquei alguns segundos a mais sobre a mesa, prologando aquela dor. Eu precisava me lembrar, eu queria me lembrar. Foi mais um sonho perdido, mais um pedaço do meu futuro sendo condenada sobre os meus olhos. E eu não fiz nada.

Então com o tempo me ajustei ao silêncio, passei a não suportar mais um pedaço de John e sua voz era como um ruido agoniante. O silencio se tornou confortável, um amigo, uma pequena frecha de luz em meio a todo aquele pesadelo. Talvez eu consiga acordar um dia. Foi o que pensei.
A verdade é que eu continuo presa a ele, vinculado por um papel e uma promessa. Tenho vontade de rasgar os dois. Prometer o "até que a morte nos separe", me deu apenas mais combustível para desejar sua morte.
É duro, eu sei, mas eu desejo mesmo assim. Quando meus joelhos tocam o chão em uma oração, não peço pelo bem comum, fim da fome ou pela liberdade de muitos, não. Eu torço e peço para que John morra. Que ele suma, deixa de existir e vire cinzas.
Devo parecer uma fiel devota aos seus olhos, uma mulher intriga que se dobra no chão e pede para o próximo, mas há tantos defeitos em mim. Há tantos anseios e egoísmos que quando busco uma saída parece que só encontro ela. A morte dele significa vida para mim, liberdade, ar. É alcançar a felicidade sem quebrar uma promessa.

— Bom, preciso ir – ele diz e sou arrancada de meus desejos mais obscuros.
— Claro – me levanto e começo a limpar a mesa.
— Acredito que retorno em três dias – comemoro silenciosamente. — Caso os planos mudem te aviso.
— Ok – o levo até a porta, como sempre.
— Querida, antes que eu me esqueça – ele diz pousando as malas no chão e olhando para o interior da sala. — Dê uma geral nessa casa, está imunda – sinto vontade de mandá-lo a merda.
— Claro, querido – odeio chamá-lo assim, mas é como uma provocação para mim.

Ele deixa um beijo em meus lábios e sorrio nervosa quando sua boca deixa a minha. É insuportável.
Quando seu carro faz a curva, solto o ar e o deixo preenche meus pulmões novamente. É como se eu estivesse presa hás dias em total escuridão e finalmente visse a luz do dia. Quando o silêncio não compartilhado retorna, todos os pensamentos sobre Henry os acompanham e a minha cabeça começa a gritar. Preciso desfazer o mal-entendido.

Volto para casa e subo de pressa para o andar de cima. Procuro entre todas as minhas peças de roupa algo adequado, mas que seja bonito. Não entendo essa vontade de parecer bonita aos olhos de Henry e tento não prestar atenção nisso.
Opto por um vestido verde musgo que usei poucas vezes e que John odeia. Os meus cabelos estão soltos como um véu encaracolado que cobrem meus ombros. Passo o olhar rápido pelo espelho, tentando ignorar o enjoo que sinto ao ver minha imagem, mas algo diferente acontece, pela primeira vez em meses, gosto do que vejo. O vestido está um pouco largo em lugares que antes eram preenchidos. O cabelo cor de fogo em contraste com o vestido me fazer sorrir.
Desço devagar maquinando o que devo falar, primeiro preciso pedir desculpas e entregar o açúcar e depois, bom, depois eu não sei. Talvez eu entregue e retorne para casa. Talvez ele me faça rir. Talvez ele seja casado e sua esposa atenda e eu explique o ocorrido. Tento sincronizar minha respiração enquanto encho a xícara com açúcar e até provo uma colher para garantir, dessa vez de fato é o que foi pedido.
Saio em direção a porta, estou nervosa, mas vou assim mesmo. Um ato de coragem em meio a tantos fracassos. Bato em sua porta três vezes e penso em desistir em cada uma delas, até que na última a porta é aberta.

Casos Ilícitos - A casa da frenteOnde histórias criam vida. Descubra agora