Capítulo VII

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INVASÃO DE DOMICÍLIO

Talita Vasconcelos

Era uma noite de sexta-feira como qualquer outra, exceto por dois detalhes: o primeiro é que a energia elétrica acabara por volta das seis da tarde e não dava sinais de que voltaria tão cedo; o segundo, era que eu suspeitava que o vizinho da frente havia entrado em meu apartamento na minha ausência, o que, por si só, já seria muito perturbador; e ficava pior na escuridão. Afinal, como ele conseguira passar pela porta sem arrombar a fechadura?

Mas eu encontrara uma prova indiscutível de sua presença ali: um chinelo, filho único, destituído do irmão gêmeo, que eu vira não sei quantas vezes no pé dele. Era um desses modelos antigos de chinelo slide, com sola de borracha e a tira larga de espuma, revestida de tecido impermeável, de cor marrom acetinado.

A descoberta do chinelo primeiro me surpreendeu. Em seguida levantou a questão de como foi parar lá. E por fim, fez-me pensar com preocupação se teria deixado alguma cópia da minha chave dando sopa em algum lugar. Não sou daquelas pessoas habituadas a perder chaves, que precisa deixar uma cópia de emergência embaixo do capacho. Aliás, sequer tenho um capacho em minha porta! Mas não havia outra explicação: se ele entrou no meu apartamento, e não havia sinais de arrombamento, forçosamente, ele deveria ter usado uma chave, não é?

Não tenho a pretensão de ser um Sherlock Holmes, mas você há de convir que a dedução era óbvia.

O que também levantava outra questão: o que ele viera fazer aqui? Eu inspecionara todos os cômodos, e, aparentemente, até onde eu podia dizer, na parca iluminação produzida por duas lâmpadas de emergência à bateria, nada fora levado.

Eventualmente, eu me perguntaria se ele teria deixado mais alguma coisa no meu apartamento, além do chinelo. Pode me chamar de paranoica, mas eu não descartaria a hipótese de ele ter instalado uma câmera para me espionar.

Não que o Sr. Adamastor Franco – era esse o nome do vizinho, e você pode notar que não se trata de um nativo digital – já tenha dado sinais de ser um tarado, ou mesmo de entender qualquer coisa de instalação de equipamentos visuais. Para dizer a verdade, eu pouco ou nada sabia desse meu vizinho, com quem troquei no máximo duas palavras aqui e ali, nos quatro anos em que moramos de frente um para o outro. Só sei o seu nome, aliás, porque numa ocasião, uma correspondência dele acabou indo parar na minha caixa de correio.

De qualquer modo, vivemos num mundo que não nos permite confiar demais nem na própria sombra. Por que não imaginar que o vizinho da frente, solitário e reservado, praticamente um ermitão, seria tão perturbado quanto Norman Bates a espiar Mary Crane no chuveiro?

Meu primeiro instinto seria chamar a polícia, e pedir que revistassem o apartamento em busca de qualquer indício da tal câmera, mas havia um problema: se eu estivesse enganada, o Adamastor poderia me processar por calúnia. E isso seria tão esquisito quanto.

Decidi resolver a questão por mim mesma. Não poderia procurar direito a suposta câmera escondida enquanto a energia não voltasse, mas nada me impedia de dar com aquele chinelo na cara do sem-vergonha!

Assim, munida de uma das lâmpadas de emergência, cruzei o hall e fui bater na porta do vizinho com o chinelo dele na mão, pronta para quebrar o barraco, e forçá-lo a me dizer que droga ele foi fazer no meu apartamento em minha ausência, e, mais importante, como entrara lá.

Toquei a campainha, uma, duas, três vezes. Nada. Lembrei-me, claro, que estávamos sem energia. Força do hábito. Bati, então, na porta. Nada. Esmurrei-a, chamando o nome dele. Nenhuma resposta. Esmurrei a porta, gritando o nome dele e todos os palavrões que conseguia me lembrar. Zero resposta.

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