Sendo surda oralizada, Amali tem um sonho guardado no coração: ela gostaria de ser professora do Ensino Fundamental, mas não tem sorte. Ela já concluiu a faculdade de Letras - Português e se sente totalmente preparada para ensinar, mas, em sua busca...
Cabeçalho de cor café com leite. Ao meio, tira retangular contornada por um pontilhado azul. Dentro lê-se "Capítulo 6" em roxo. Abaixo, três canetinhas: uma laranja, outra roxa e outra rosa.
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— Sim, senhora. — Sua postura estava ereta e respeitosa. As mãos ao lado do corpo. As unhas pintadas de rosa-claro cintilando contra a luz do recinto. — Pode falar. O que deseja?
A outra puxou uma cadeira de plástico transparente para se sentar. Não falou nada durante este gesto, seus lábios em riste e sem expressão de cordialidade.
— Quero conversar. — Pigarro. — Sobre o que aconteceu há pouco. Queira sentar-se, Éden, por gentileza.
A funcionária de meia-idade girou nos calcanhares, indo para detrás de sua mesa. Puxou um deles para ficar mais perto do esquerdo. A ponta de seu salto ruiu, friccionando contra o chão. Deixou que seu peso desabasse sobre a cadeira detrás dela.
— A senhora não quis atender a candidata. Me pergunto por que motivo. Você nunca recusou ler currículos ou ouvir as experiências que as pessoas a trouxeram. Mas por que se recusou a escutar Amali? — Incisiva, tentei controlar minha fala, evitando utilizar de pronomes informais. Isso precisava ser objetivo.
Ela bem que tentou começar a argumentar, porém gaguejava, passeando os olhos entre mim, a mesa e seus utensílios de trabalho: um porta-lápis de madeira, onde estavam enfiadas duas tesouras de tamanhos diferentes, folhas de pauta misturadas com folhas ofício, fita gomada já utilizada e um durex com a ponta presa ao limite da mesa cinza.
— Não sei... De verdade... Devo ter ficado nervosa com ela... Me assustei. — Encaixava suas palavras entre pausas muito longas. A apreensão as acompanhava. Não conseguia concentrar seu olhar em mim.
— Ah, assustou? — Desfiz a linha fina de meus lábios para soltar uma pequena gargalhada. — Aham... — Movi a cabeça, compreendendo perfeitamente agora. Meu olhar passou a um canto qualquer daquele espaço. Estava tomada pela decepção. Foi impossível que a minha feição não se transformasse ao ouvir o que disse. Éden teve medo. Assustou com uma pessoa. Por causa do aparelho auditivo dela. — Isso é sério? — Foi o que perguntei, as minhas sobrancelhas em desnível. Havia rugas em minha testa. Aquilo era um absurdo. — A senhora tem ideia do que fez? — O tom de minha voz afinou, como uma linha de costura prestes a ser facilmente quebrada.
O seu olhar diante da minha expressão horrorizada não mudou, entrementes podia notar a tensão em seu corpo. Éden estava dura à minha frente. Embasbacada.
— O que foi que eu... fiz?
— Ora, Edê. Isso é um crime!... Hã! — Me senti insultada. No fundo de meu subconsciente, sabia que tinha lido isso em algum lugar.
— C-crime?... O quê? E-eu... Mas eu não...
— Sabia? — Gargalhei baixinho, sem sorrir. Incrédula. — Como você lida com as pessoas? Como está trabalhando em uma escola e não sabe disso?! — Me recostei em meu assento. — Não é possível... — Neguei com a cabeça, aproximando-me da mesa dela. — A Internet da escola está funcionando? Pesquise para mim. E leia em voz alta, por favor.
A secretária prontamente começou a digitar, passando os dedos pelo teclado, apagando algumas vezes e escrevendo novamente. Com a ponta dos dedos abaixo do queixo e uma expressão interrogativa, as sobrancelhas saltadas enquanto rolava a bolinha do mouse.
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Leu para mim o texto de um site que expunha um artigo da Lei brasileira de Inclusão, o artigo de número 88. Ela ficou estática. Nos pormenores, havia prisão de 1 a 3 anos ou multa. Suspirei, com uma das mãos na cabeça.
Vou ter de começar a conscientizar pessoas como Éden. Caramba, nãoacredito que issoestá acontecendo.
— Desculpe.
— Quero que aprenda com seus erros. Você já devia saber. A falta de informação é um mal quase irreversível. Nós precisamos aprender a aprender. E eu também. Não tem problema. Já estou tentando resolver da melhor forma possível. Não a dispensei. Ela virá de novo aqui. Observe. Não aja por impulso. Apenas tente ficar tranquila. Não fique com medo, ou é você quem pode assustá-la. Acabamos por aqui. — Me ergui e saí dali, ainda um pouco nervosa.
Respiro fundo uma vez, quando já estou de costas.
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Em nossa escola havia uma sala de atendimento especializado para pessoas com deficiência, e Emílio fazia parte do programa. Ele se comunicava conosco somente através de gestos soltos e confusos que muitas vezes Lara tinha dificuldade em entender. Ele reproduzia apenas alguns sons. Sua mãe tinha medo de lhe pôr em uma sala de aula regular porque havia me relatado que o filho sofria discriminação sempre quando estava presente numa. Então ele ficava com Lara durante um período de tempo, apenas participando de atividades mais simples, como pintar ou aprender a encaixar objetos coloridos ou de madeira.
Tinha dito à Mara Elisa, quando ela perguntou se não poderíamos testar coisas novas com ele, como ensiná-lo a falar algumas cores ou quantidades:
— Lamento. — Eu disse. — Contar com Lara é tudoestá a nosso alcance agora.
Afasto a lembrança. Havia sido meio egocêntrica. A situação de Emílio me voltava à mente de vez em quando, e me encolhia de tristeza em minha sala.
Agora sei que posso tentar mudarisso. — Levantei meus olhos castanho-escuros ao teto. Amali pode vir vê-lo e dar esperanças à mãe dele.