Tiro de Misericórdia

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#PRATODOSVEREM 👁

Cabeçalho de texto de cor café com leite. Ao meio, lê-se "Prólogo", na cor roxa. À esquerda, um aparelho auditivo azul e branco.

 À esquerda, um aparelho auditivo azul e branco

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Amali não costuma acordar como os outros. Pelo menos não de manhã. De manhã, as luzes da casa se acendiam todas a uma certa hora, e ficavam a piscar, piscar e piscar, até que ela acordasse com a claridade fluorescente vindo de encontro aos olhos quando se virava para ver que diabos estava acontecendo. Ela se irritava, virava para o outro lado, onde havia uma cômoda. Mais alguma coisa piscando. Punha a mão ali para desligá-la com um grunhido.

Para você pode parecer o começo de um dia comum, não é?

Claro. Amali deixaria a cabeça pender em direção ao travesseiro se a bugiganga não tivesse marcando o horário para acordar. 6h10.

Ah, caramba. Ela pensou. Que saco!

Sim, ela iria à escola hoje. Sim, ela estava emburrada, com fadiga e descabelada. Sim. Ela iria a mais uma escola procurar uma vaga de emprego. 

Mais uma chance de ser rejeitada. Ê, Brasil! Que beleza!
       
Grunhiu de felicidade. Não. Ela não estava feliz. Mas mesmo assim ergueu os punhos para cima e fingiu. Depois deu um sorriso chocho. Meio-sorriso.

Ela levantou e foi até a veneziana afastar as cortinas para deixar a luz do sol entrar e aquecer aquele quarto que mais parecia o Alasca porque... Bem, ela havia tido uma crise de pânico ontem à noite. A temperatura deve ter esfriado de madrugada. Ontem, a noite havia sido ruim. Hoje, de manhã, voltou a esfriar.

Ontem à noite também estava assim: quente e frio. Amali não quer relembrar. Por isso balança a cabeça. Senta à beirada da cama de novo. Levanta após cinco segundos ao olhar em volta e vai à penteadeira. Seu cabelo está... É, está. O frizz enfeia seus dreads. Ela passa uma mão por cima da cabeça. Descontente.

Pega uma toalha de banho sobre um cabide.

Vamos lá. Vamos ser feitas de boba de novo. E de novo. E de novo. Até você conseguir um emprego.

Um emprego.

Amali já fora rejeitada dezesseis vezes em dezesseis escolas diferentes para um mesmo cargo. Ela quer ser professora. Foi rejeitada por um detalhe e aparelho tão pequeno. Na verdade, as secretárias encararam como dois. E são pequenos. Um deles é que ela não consegue se comunicar bem. O outro — talvez grave, se lhe serve um grande prato de ironia — detalhe é que Amali nasceu com surdez severa num dos ouvidos, mas consegue ouvir um pouco com o ouvido direto.

Qual é o grande problema querer ensinar sendo uma pessoa surda? Eu lhe digo. Não há nenhum problema.

Mas não foi nessa falta de problema que as 16 secretárias escolares pensaram. Elas ficaram horrorizadas quando viram que a jovem jogou sobre a mesa o aparelho auditivo para constar ser uma pessoa capaz de ensinar algo pelo menos a um único aluno.

É a décima sétima. E depois ela desistiria de vez. Garantiu a si mesma que desistiria.

Saiu do banho. A toalha branca sobre seu corpo e pingos d'água brilhando em seus ombros e pescoço. A touca plástica de banho tinha pingos d'água aqui e ali.

Sem perspectivas, pôs-se a procurar uma roupa alegre que disfarçasse a falta de esperança em seus olhos. Pôs sobre a cama uma blusa de mangas amarelo-queimado. Uma faixa de cabelo branca e uma calça com quatro bolsos. Um tira-coloca treinado para esconder o aparelho. Ia ser assim de novo. Ela encolheu os ombros uma vez, como se dissesse:

"Não foi a primeira, segunda ou terceira vez que fiz isso. Por que vou me chatear? Não há mais motivos, não é?"

Fez um delineado amarelo estilo gatinho, que depois contornou de preto, pôs os brincos de argola dourados e calçou os sapatênis rosê. Abriu a segunda gaveta onde guardava alguns currículos impressos. Juntou todos direitinho, pegou o colecionador, abriu a porta e se esgueirou para fora do quarto, respirando fundo uma vez.

AmaliOnde histórias criam vida. Descubra agora