II | Doce Amizade - Fortuita Amizade

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Folhas de saturado verde aglomeravam-se num dossel, filtrando um sol excessivamente brilhante

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Folhas de saturado verde aglomeravam-se num dossel, filtrando um sol excessivamente brilhante. O céu, hiperbolicamente coral: reluzia até cegar - parecia queimar. Era a segunda alvorada dela em um só dia. Quantas manhãs não haviam de ocorrer em tantos outros lugares - outros mundos?... Havia quantos?

Suas íris verdinhas e medrosas, e sua expressão espantada decidiram não saudar ao dia. Com olhos semicerrados, sacolejou os braços na água, esbarrando em folhas gigantescas até para humanos. Cornélia ouviu um vocal animalesco breve, mas especialmente ensurdecedor.

Com pálpebras fechadas, desejou tornar-se um verdilhão. Pousou sobre a enorme planta aquática - uma vitória-régia de dois metros de diâmetro - contemplou o entorno, tão exuberante, tão vivo, tão colorido e quente - mais doce do que o mundo ao qual tentara acostumar-se; Um tanto excessivo aos olhos - extravagante, não menos admirável. De sua folha, notou a abundância de plantas aquáticas na imensidão fluvial: aguapés lilases, lótus, ninfeias-vermelhas e, reinando numa das margens, papiros-brasileiros. Aquele corpo hídrico era cercado por uma floresta densa e vibrante, onde apreciava-se açaizeiros, buritizeiros, babaçus, guaranazeiros, paxiúbas e cumarus.

Ouviu-se novamente o canto altíssimo; Procurando pela fonte identificou um pássaro da cor das nuvens com um longo bico: um araponga-da-Amazônia. Sua mente deleitou-se com a visão e audição da infinita orquestra de aves: sanhaços-da-Amazônia, anambés-azuis, araras vermelhas, polícias-do-mato, sairás-sete-cores, uirapurus, pica-paus-barrado.

Olhou nos olhos nada gentis do gatinho na água fria - encharcado. Ele, definitivamente, não gostara de pular na água para viajar e cair em mais água. Pensamiento nadou até uma planta próxima de Cornélia, que observou-o com carinho.

Cornélia foi alçar voo quando, repentinamente, viu algo impensável em meio àquela mata: um palácio dentro do rio. Um palácio mínimo - mas régio - de mármore azulado; Forma cilíndrica, uma cúpula como teto, enormes janelas  envidraçadas, uma escadaria para água. Aquele palacete não era dali, evidentemente, além de construção antrópica tinha um quê de mágico - quase-miragem.

Pousando no corrimão, ouviu uma melodia do que humanos nomeavam jazz e uma voz angelical e absorta. Espiou por uma janela, um rosto humano encarava desconfiado as paredes, procurando algo - pensava estar só. A pessoa dirigiu-se à porta, Cornélia pousou no chão.

Uma jovem alta, de expressão elegante, saiu - cabelo raspado, pele escura e reluzente, olhos como jaboticabas, vestida num bustiê alaranjado e numa esvoaçante saia rosa que bailava com o vento sobre seus pés descalços. Procurou "o algo" que lhe atrapalhara: nada. Seus olhos recaíram sobre o verdilhão, que soluçou. "Pássaros soluçam?", pensou a menina. Cornélia fugiu.

Cornélia e Pensamiento foram de planta em planta até margem. Ela sussurrou palavras mágicas que secaram seu amigo, que assentiu e roçou em suas pernas. Estava empenhada em fazer bom uso do rio - para quase toda poção mágica era necessário água - ainda que seu plano fosse deixar a beleza verde naquela noite...

Vasculhou a bolsa a procura do pó-de-fada. Misturando-o com água poderia mantê-la por três dias do tamanho humano. Ambos beberam do mingau cintilante.

A fadinha entrou no palacete, tomaria confiança para falar com ela - precisava de ajuda. Enfrentar medos, conhecer-se, achar seu mundo: esses os objetivos da jornada. Invadiu-o, empurrando a porta encontrou-a sentada no piso da muitíssimo estranha sala. Ao chão, várias almofadas; no teto, um lustre de penas e cristais, todo tipo de instrumento musical em todo canto. Outra bizarrice: uma escada no piso para o-que-seria-um-porão - mas estava submersa em água.

A garota estava surpresa, comumente não recebia visitas - nem invasores. Contudo, não sentiu medo. Numa língua que Cornélia não compreendia disse:

- Que procuras?

- Sou Cornélia. Não sei onde estou, nem te entendo...

As duas se olharam - meio perdidas meio desapontadas. A garota não desistiu: gesticulou numa língua de sinais. Para sua surpresa, Cornélia a respondeu - também falava a língua de sinais ka'apor.

- Sou Kamala, uma limnátide, ninfa protetora do lago. Você? - disse, sorridente.

- Sou Cornélia, uma fada, estudei o domínio de magia. Isto é um lago? Parecia-me um rio.

- Fada? Pensei que fossem menores. Aqui, utilizamos a magia que a natureza fornece... Sim, o Lago Cuipari.

- Sou do tamanho de um pássaro, é o efeito de uma poção... Você respira embaixo d'água? Há muitas agui?

- Sim, respiro sob água. Somos pouco mais de quarenta limnátides.

- Imagino que eu seja mais tumulto do que o normal.

Kamala não sorriu, apenas disse:

- Há mais trabalho ao Norte, o desmatamento e o garimpo humanos têm ameaçado os esforços de muitas ninfas.

- Sinto muitíssimo...

- Aprendemos a não conversar com ignorantes... Trouxe alguém? Creio que queira ajuda, conte a mim e minha mãe sua história com um chá.

- Tenho um pequeno amigo. Mas, odeia água.

Ele voou até elas.

- Está é Kamala, ninfa do lago, irá ajudar-nos, Pensamiento.

- Por favor, não assuste-se.

A ninfa sentou-se na escada, suas pernas no Cuipari, e metamorfoseou-se - ganhou uma cauda de escamas rosadas.

- Não sabia que ninfas pareciam sereias!

Kamala riu. Depois, beijou as próprias mãos, pegou uma porção d'água, levou aos lábios e soprou - uma bolha gigante surgiu.

- Pule aqui!, gatinho. Não vai molhar.

- Cornélia, terá de beber da água para respirar lá.

🦜

Foi uma tarde de descobertas e solidariedade. Apesar da amizade improvável que nunca tivera estar ali - a fada deveria ir, tristemente.

Á tarde, descobriu que ninfas eram ávidas musicistas, porém não tocavam no lago, onde tudo era inaudível. Á noite, que Kamala também tinha um amigo (não de estimação): um boto cor-de-rosa - falante.

A limnátide contou-lhe que uma semente era capaz de levá-la a outros mundos quando mastigada.

- É a poção da qual lhe falei: um raio de sol,  três insetos macerados e água. Falará comigo sempre que quiser: despeje numa tigela e sussurre meu nome - disse Cornélia, dando-lhe uma garrafa de poção dourada.

Kamala lagrimejou quando abraçaram o talvez-último-abraço.

- Sentirei saudades - disseram em coro.

Ao quebrar das sementes no dente: um alçapão abriu-se.


1000 palavras

A Heterotopia da FadaOnde histórias criam vida. Descubra agora