I | Mergulho de Mistério

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O mundo anil do entorno, nebuloso – nada fazia-se visível

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O mundo anil do entorno, nebuloso – nada fazia-se visível. Retraia-se o coração, enchia-se e estirava-se – rasgava-se, estendendo até ceder – até morrer. O peito pulava no pequenino corpo. Lufadas de ar corriam dos lábios, ainda que arfasse intensamente. Tudo se decompunha e abstraia-se em desconexão – uma pintura surrealista.

A morte a esperava, batia à porta, sussurrava seu nome – puxava-a para as trevas, sombrias, sanguinárias. Tinha certeza: era seu fim. Seus olhos – uma mistura de lágrimas borbulhantes e névoa. Há pouco, sua camisola havia sido atravessada por um canivete. Quão reais podiam ser os pesadelos? Temia ver sua lápide: não conteve o soluço ou o pavor...

O alarme soou: sinos, cristais e pedras tilintaram no galho seco dependurado na ventana entreaberta.

Já sentada, tocou a cama macia, notou as paredes indiferentes, olhou a janela com sua claridade – então, encarou-se no espelho com seu rosto salgado e sua solidão. Viu o medo nos olhos, viu seus olhos virarem o medo – encarou o medo.

Dessa vez, o vento bradou: “A aurora não tarda”! O azul de seu pânico metamorfoseou-se em dourado. Findara o transe.

Da janela, Cornélia admirou a dança invisível do ar entre os penduricalhos e o âmbar através das pétalas de gardênia costuradas. Que acalento!

Contudo, Cornélia era a fadinha mais aterrorizada da vila. No alto dos cartorze, já convivia há duas primaveras com a dupla orfandade: nunca conhecera os pais, fora amada pelos tios. Então, assistiu-os morrer – queimados. As cicatrizes às vezes sangravam novamente.

Ela nascera diferente: tinha gosto pela solidão. Nunca encaixara-se na sociedade das fadas. Sonhava docemente com clausura, só não queria viver em sua mente limitada – sempre fugindo. Tudo em seu mundo era tão, tão desconcertante – constrangedor. A peculiar Cornélia nem ao menos sabia se era um ser social. Que faria?

Não tinha mais família ou amigos, planos ou perspectivas (não ), não sabia viver coletivamente. Tinha aquele quarto particular, privilégio que ganhou sendo rude – a fada não respondia bem às crianças que se aproximavam. Só pensava em esvair-se ao vento – pegaria um barco para novas águas.

Sentia-se mal somente pelas pobres celibatárias do orfanato... Ah! Havia uma que, independentemente do quanto afugentada, sempre voltava a mostrar-lhe gentileza.

Partiu ao nascer, cruzando a janela para rua já não pertencia a lugar algum – expatriada, prazerosamente. Consigo, uma bolsa de pertences, um frasco de pó-de-fada, uma xícara de utopia e – o mais imprescindível, seu gato alado, Pensamiento, eterno companheiro, amigo.

Ela voou, não como uma fadinha ordinária – como um pássaro, o verdilhão, no qual era livre. O verdilhão: o segredo mascarado no verde-amarelado de suas asas e em seu sobrenome – a única herança da família, só essa teria desejado. Afundou-se no abismo de suas dores, mas, agora, ora sorria para o vento ora para Pensamiento.

Chegou o momento – saltaria num poço de mistério – sabia bem o que estava fazendo. Cornélia pousou na Caverna da Perdição, nela existia o Lago Reflexivo – portal capaz de mergulhá-la em outras realidades. Porém, não sabia-se para onde o lago te levaria – era concedido um único pedido: o viajante escolhia uma característica do lugar para o qual fosse. Ela desejou ir a um lugar com água abundante.

Olhou as asas penadas do gatinho, abraçou-o, saltou – afundando no desconhecido. Poderia ser sua heterotopia!

Enquanto isso, um papiro perfumado era lavado com lágrimas: a freira Ave chorava sobre as palavras – as desculpas.

Srta. Ave,

Perdão! Mais nada posso dizer-lhe.
Eu parti em busca do extraordinário, do mundo em que eu seja só sem ser triste; do mundo o qual entenderei e me entenderá. Sei que soube amar-me, mas tu amas um mundo que me expulsa.
[...]
Deixo-te flores, a caneta de pavão (consegui teu presente do sonhos com magia, tive somente que reduzi-la um tanto) e a certeza de que fostes para mim uma açucarada influência. Amo-te!
Um conselho (do qual não necessitas): nunca pares de mostrar bondade aos não merecedores.
[...]
Lembrar-me-ei de teu sorriso! Adeus.

Com saudade, gratidão e esperanças,
Cornélia Floros.


P.S.: Mil perdões! Sei que as tirarei da rotina.

Cornélia acordou num rio, que circundandava um palácio.


699 palavras.

A Heterotopia da FadaOnde histórias criam vida. Descubra agora