Encontro Inesperado

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  Mais um dia normal em Abdulon. Passos firmes ecoavam pelos corredores da grande torre do relógio, imponente e rústica em tons enferrujados. O característico cheiro de ferro úmido impregnava o ar, permeando todo o lugar. Essa torre abrigava "O Conselho". A cada tique-taque do grande relógio, que ecoava pelas paredes, a jovem caminhava rapidamente pelo corredor de teto circular e paredes de pedras. Elizabeth se dirigia ao pátio nos fundos, em direção ao seu pequeno biplano coberto. Todas as manhãs, ela tinha a incumbência de cuidar dos limites da cidade e certificar-se de que tudo estava sob controle.

 Com seu capacete aviador em mãos, a jovem já em frente ao seu pequeno biplano coberto, dirigiu-se à lateral, apoiando seu capacete na asa do biplano. Prendeu seus médios fios acastanhados sem caprichos e vestiu o capacete logo em seguida. Abriu a escotilha de vidro, apoiou-se na asa inferior e, com um impulso, adentrou o pequeno espaço. Ligou os motores e iniciou sua decolagem. Ao alcançar uma boa altitude, direcionou-se para o oeste

  Sobrevoando indústrias fumacentas tingidas pelas cinzas da fuligem das grandes chaminés, logo à frente, um grande conjunto de casas de três a quatro andares e ruas de paralelepípedos se estendiam. Tons de marrom, cobre e ferrugem se repetiam. Após o subúrbio, havia uma grande praça, a Praça Central, com uma fonte localizada em seu centro. Entretanto, a fonte não possuía água fluindo, apenas uma poça turva no fundo. Essa praça dava acesso à entrada da cidade, que permanecera trancada por muitos anos. Próxima à entrada, encontrava-se a estação ferroviária da cidade, responsável por dividir o campo da civilização e ser o principal meio de transporte de cargas e alguns moradores das vilas próximas.

 Elizabeth ultrapassa a estação ferroviária e logo avista a área onde, em outros tempos, existia uma densa extensão de árvores. No entanto, restavam apenas tocos de árvores mortas. Ela simplesmente ignora, pois já estava acostumada com tal descaso. Ao longe, avista um grande autômato lenhador, cortando os últimos hectares de árvores. Deve ser assustador estar tão perto de uma máquina dessas, pensou. A madeira era o principal combustível das grandes caldeiras das fábricas, além de ser a matéria-prima principal para a fabricação de belíssimos móveis. O pequeno biplano ultrapassa a área desmatada e chega a um gigantesco campo de gramado escurecido, que termina no penhasco de Abdulon.

  Uma luz vermelha se acende no painel, a jovem nota que há algo estranho com seu pequeno biplano. Elizabeth se prepara para o pouso próximo ao grande muro, que era tão alto que seu topo se encontrava coberto de nuvens. O pouso é feito com facilidade, pois a jovem aprendera a pilotar muito cedo. Saindo de dentro do biplano, num impulso, Elizabeth pousa os pés na grama desbotada e caminha em direção ao motor. Ela abre o capô arredondado e observa a área, logo encontrando o problema. 

– Um cabo solto, eu deveria ter revisado tudo antes de decolar... – Comenta consigo mesma. 

  Conecta o cabo em seu devido lugar e decide fazer uma vistoria em toda a máquina. Nada escapa de seu olhar minucioso. O combustível está na reserva e pequenas falhas passaram despercebidas naquela manhã. Sua mente está perturbada com os estranhos sonhos que tem tido nos últimos dias, como um filme que se repete dia após dia.

  Fecha o capô cobreado e olha ao redor, pensando no que fará. Seria perigoso continuar o voo com pouco combustível. O caminho percorrido foi longo e ainda há um longo trecho a percorrer durante a patrulha. Se retornasse, seria repreendida por sua distração. Ela respira fundo, tentando formular alguma ideia. Por enquanto, seus olhos se perdem apreciando a paisagem simples que termina no penhasco. Elizabeth observa o grande muro à sua esquerda, com rachaduras e frestas espalhadas por toda a extensão dos tijolos encardidos. Há buracos do tamanho de um palmo, o que desperta uma ideia assustadora de aventurar-se do outro lado. 28Mesmo que não seja possível atravessar os muros, pois fora de Abdulon só existe a escuridão, uma noite sem fim e sem vida.

 Um brilho reflete próximo ao penhasco, como um metal exposto ao sol. Sua atenção se prende ao ver os metais retorcidos em meio a fumaças brancas ao longe. Seu biplano a distraíra tanto que nem havia se dado conta do que estava logo à sua frente. Próximo à beirada do penhasco, encontra-se o sítio abandonado do já falecido Sr. Otto. A jovem avista o que reluzia: uma máquina peculiar caída, destroçada pela queda.

 Para poder ver melhor o que ocorreu, precisa caminhar até lá. Seria desnecessário pegar seu pequeno avião para isso. Ela para e analisa um pouco a situação, até que cria coragem suficiente para caminhar a grande distância. Elizabeth pega uma mala de couro que estava dentro de seu biplano. Sempre a carregava consigo para casos de imprevistos. Coloca-a nas costas e segue em direção à fazenda. O caminho é um pouco árduo, pois o terreno é bastante irregular e cheio de pedras.

Era um dirigível. Ao cair, percorreu um curto trajeto deslizando até o penhasco e parou ao atingir uma grande pedra. Se não fosse essa pedra no caminho, a grande máquina teria mergulhado penhasco adentro. Os destroços estavam a apenas um metro do penhasco. Impressionantemente, não estavam totalmente destruídos. Elizabeth toca o metal das turbinas que estavam caídas ao lado após os balonetes perderem o ar. Estava frio, indicando que o acidente não era muito recente. No máximo, o dirigível tinha caído no dia anterior. 

  Ela se aproxima para ver se encontra algum sinal de vida naquela máquina prata e dourada, com desenhos em branco na lateral. Nunca havia visto algo assim em toda Abdulon. A porta de entrada estava trancada, mas a janela estava destroçada. Através do vidro quebrado, ela vê o interior do dirigível, que se encontrava em uma enorme bagunça, mas não havia ninguém lá. Elizabeth olha ao redor e não encontra nada além de pedaços de metal espalhados, mas nenhum tripulante. Apenas o casebre abandonado do Sr. Otto está adiante.

 Senhor Otavio Oleiro, conhecido por seus amigos como Otto, apelido dado por sua esposa Karye. Há vários anos, ele cultivava nos campos próximos ao precipício. Após o falecimento de sua esposa, ele parou de cuidar do cultivo como antes. Mal saía de casa, e seus funcionários se demitiam devido ao baixo pagamento que recebiam. Assim, o idoso de oitenta e três anos abandonou seu espaço entre as antigas árvores, as quais foram cortadas tempos depois. Otto decidiu viver na cidade, o que teve um impacto  negativo em sua saúde e acabou vencendo-o, não permitindo que ele visse os campos novamente. 

  Já havia ido tão longe. Se questionaria muito mais tarde se não entrasse para checar. O som de madeira velha rangendo ecoa alto quando Elizabeth pisa na varanda. Tons de cinza estendem-se do chão ao teto. O tempo não foi muito justo com o pobre casebre. Ela abre a porta e vê os móveis que restaram cobertos por uma espessa camada de pó e mofo. Três cômodos: sala, cozinha e um quarto. O banheiro ficava do lado de fora, um pouco mais distante. A porta da frente leva diretamente à sala, à esquerda fica o quarto, e nesses cômodos não há nada além de uma cadeira de balanço e um estrado de cama de solteiro.

 Ao chegar na cozinha, ela encontra uma moça. Esta está sentada em uma cadeira de madeira, com os braços como travesseiro, adormecida. Seus longos cabelos cor de cevada cobrem sua cintura. A jovem está coberta de sujeira e apresenta roxos em sua pele. Há um machucado grande em seu braço direito e seu rosto aparenta estar muito cansado. Elizabeth não consegue imaginar o que aconteceu, mas é nítido que por pouco não ocorreu uma tragédia. Ela se aproxima e estende a mão com cuidado para acordar a pobre moça. Porém, o chão de madeira estala com o peso da moça, assustando as duas. A jovem olha para Elizabeth, que recolhe a mão num susto. 

– Você está bem? – Foi a única coisa que conseguiu dizer.

– Estou bem, obrigada por perguntar. Onde estou? - Ela mostra um sorriso agradável ao levantar-se, mas segura seu braço, demonstrando que o ferimento estava bastante doloroso.– Tem certeza? – Elizabeth arqueia uma sobrancelha ao observar o estado da moça. 

– Estou viva – Ela sorri ao dizer isso, mas não deixa de ser estranho para Elizabeth. A verdade é que a moça é toda estranha, desde as roupas até suas atitudes. 

– Estamos nos arredores de Abdulon. – Ela fala séria, encarando-a

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