Parte 3

11 0 0
                                    

Estes acontecimentos foram dificultar um pouco a vida da raposada e, principalmente, da jovem kitsune que ia ter de se esconder melhor para não ser descoberta. Optou por dormir na cova de um salgueiro, mais afastado dos novos habitantes e perto do templo, e começou a sair durante a noite enquanto todos dormiam. 

Nessas noites em que Aya passeava, pôde ver de perto como eram os seres humanos. As crias, chamava ela, eram muito choronas, sempre dependentes da atenção e do amor dos progenitores. As mães choravam a ter as crias e sorriam depois. Os adultos choravam pelas dificuldades e pelo futuro das suas famílias. Os velhos choravam pela saudade dos tempos felizes. Lágrimas. Era a característica comum do novo povo da floresta. 

Aquilo confundia-a e, de certa forma, aborrecia-a. A raposada estava sempre alegre e brincalhona, cuidavam umas das outras e mantinham-se unidas. Os humanos choravam, ralhavam e lamentavam as suas vidas. A sua capacidade de sobrevivência era quase nula, comparada à dos animais, mas ainda assim preferiam discutir e culpar do que reagir."Estou rodeada de gente chorona, monge.", reclamou Aya agachada ao lado da fogueira, no templo. " É natural que estejam tristes, Aya. Perderam tudo o que tinham conseguido conquistar e foram expulsos. Os tempos mudaram muito.", suspirou Hiroshi, bebericando um pouco do seu chá. "E tem mais esta situação aborrecida de eu ter de sair à noite para poder alimentar-me em paz... e o que me dão em troca é choro e gemidos." O monge riu-se por detrás da tigela escura e a kitsune franziu a testa, o que o fez tossir para clarear a voz. "Só quero dizer que, podes ser um pouco mais paciente. Tu mesma disseste que não estão a colher mais nada e quase nem comem animais. Estão a respeitar a tua casa, mas estão tristes." Aya ficou pensativa e colocou a máscara de volta ao rosto. " Vou ter de tratar disto. Podem ficar lá, mas não perturbem a minha paz." 

Foi então que decidiu agir. Uma noite, cansada de tanto choro e lamentos, Aya saiu da cova do salgueiro determinada a mudar tudo aquilo. Assim que atravessou o riacho, já sentira a energia negativa daquelas pessoas a sair pelas janelas. Então, silenciosamente, vagueando pelos casebres dos aldeões, enquanto estes dormiam, a jovem raposa começou a enxugar as lágrimas, com as mangas do seu traje, que caíam pelas suas faces durante o sono. Usando os seus poderes, ao fazê-lo, recolheu uma pequena parte das suas almas. Repetiu o mesmo encantamento em todos os casebres até amanhecer. No final da noite, já de regresso ao salgueiro, torceu as mangas e deixou o fio de água escorrer para dentro de uma esfera de cristal, criada de uma pedra branca do riacho e luz do luar, que ganhou um tom azulado. 

Sorriu perante o resultado e concluiu que assim podia controlar as suas emoções, pois sentia a energia de cada ser humano que vivia na mata, através daquele objeto

Ops! Esta imagem não segue nossas diretrizes de conteúdo. Para continuar a publicação, tente removê-la ou carregar outra.

Sorriu perante o resultado e concluiu que assim podia controlar as suas emoções, pois sentia a energia de cada ser humano que vivia na mata, através daquele objeto. Colocou a esfera no colo e envolveu-a nas mangas, depois começou a cantar uma melodia calma e reconfortante enquanto a acariciava. Aos poucos o azul da esfera foi mudando para um tom verde menta e em seguida para amarelo suave. Significava que Aya tinha conseguido o que procurava. Paz e sossego. Os dias que se seguiram foram mais tranquilos. Durante a luz do sol, escondida no seu salgueiro, Aya acariciava a bola e cantava suavemente para o objeto, enviando bons pensamentos para os humanos. À luz da lua, enquanto passeava, encontrava os aldeões a dormir tranquilamente, sem lágrimas, sem soluços, sem lamentações. Tinha sido um trabalho muito bem feito, pensou a jovem raposa. Sem lágrimas, os seus passeios seriam muito mais agradáveis.

Mas os humanos eram muito mais complexos do que Aya esperava. 

Ao estarem bem-humorados durante o dia, os aldeões da floresta prosperaram nas suas colheitas, passados alguns meses, e produziam produtos ainda melhores dos que a floresta oferecia anteriormente à aldeia rica. Com tanto fruto e verdura bons, eles quiseram tentar vender na aldeia rica, por um preço mais barato para quem não podia pagar pelo produto caro que se vendia lá. Isso não agradou os habitantes e vendedores ricos e não aceitaram perder os seus lucros para os coitados da floresta. Começaram então a proibir que os produtos da aldeia pobre passassem para a aldeia rica, impedindo assim trocas comerciais. 

Contrariamente ao que esperavam, os aldeões da floresta não se importaram com tal coisa. "Se não podemos vender os nossos produtos para ajudar quem precisa, na aldeia rica, vamos doar os mesmos ao templo. Monge, esperamos que vocês consigam fazê-los chegar aos nossos iguais e levar-lhes algum alento", afirmou o representante da aldeia da floresta, numa visita ao templo, junto com o seu filho mais velho. "Chegamos a acordo, na nossa aldeia, que fomos abençoados por Deus com tanta abundância, apesar de estarmos a ocupar um lugar que não nos pertence", disse o jovem que acompanhava o mais velho, " Achamos que já temos o suficiente, enquanto infelizmente sabemos que há quem pouco tenha. E que há quem ainda se sacrifica muito para manter a casa que tem na aldeia rica, enquanto nós perdemos tudo e tivemos esta graça." 

O velho monge, o mestre do templo, comoveu-se com tal atitude nobre e afirmou que os ajudaria. Pediu que a partir daquele momento levassem o que achavam de bem para o templo e que os monges iriam distribuir na aldeia rica. Aya também se sentiu orgulhosa por ouvir aquelas palavras, escondida atrás do muro do templo. Afinal, os humanos podiam surpreender. Afinal, havia corações bondosos a bater dentro daqueles corpos frágeis. "Fizeste um bom trabalho, Aya", saudou Hiroshi, tocando no ombro da jovem. "Enganas-te monge Hiroshi. Eu não fiz nada. Tudo em que me empenhei foi acalmar as suas dores e anseios. O resto, esta atitude nobre, não fui eu. Foram eles que chegaram lá sozinhos", respondeu Aya com o peito cheio de orgulho.

Depois desse acontecimento, cestos e cestos de mantimentos saíam da aldeia pobre para o templo e todos os dias as pessoas mais desfavorecidas e mendigos das ruas da aldeia rica era alimentada e cuidada. E isso fez com que essas pessoas também prosperassem. Ganharam força para recuperar o que tinham perdido e conseguiram. 

Mais uma vez isso não agradou aos aldeões da aldeia rica e fez com que uma raiva e desejos pérfidos começassem a crescer nos seus corações. A única forma de os tempos favoráveis voltarem à aldeia, a única aldeia, que sempre fora próspera e visitada por todos, era eliminar a fonte do seu descontentamento. A aldeia pobre. Os tempos que se seguiram foram de planeamento e uivos de revolta. A paz na floresta ficava com os dias contados.

A Raposa de FogoOnde histórias criam vida. Descubra agora