Era só mais uma quarta-feira monótona e bastante corriqueira. Se não fosse pelo fato de que daqui onde eu trabalho, parece que sempre são os mesmos dias, e as horas parecem até que nunca irão passar.
Um loop constante e previsível. Afinal de contas, aqui era um bar.
Aberto 24 (vinte e quatro) horas, para sorte de uns, como a do meu chefe, em sua sabedoria esplendorosa de absoluto empreendedorismo, ou melhor dizendo, ele não tinha nada para fazer e simplesmente dava conta da parte da manhã e da tarde, quando o movimento era tranquilo demais, e dizia que poderia dar conta sozinho.
Quando na verdade, ele só não queria contratar ninguém mais. Ter a mim e o Theodoro como seus funcionários, era o suficiente e já bastava. Era o que ele sempre falava.
Eu ficava na bancada, servindo aquelas pessoas que só queriam sentar em um banco solitário engolindo aquilo que elas achavam que precisavam, ansiavam obter para esquecer, talvez, a maioria das vezes sempre era para esquecer, esquecer a dor, a frustração, o medo, e inúmeras coisas mais.
Quem sou eu para julgar essas pessoas, por escolherem e optarem que o método de álcool no seu sangue e na sua mente, era a maneira certa de encarar as suas realidades. Ou talvez, saibam desde o início que decidiram ir, e atravessaram a maçaneta da porta, que era ali que iriam mascarar e aprofundar a sua dor, em um copo, dois copos, três copos, eles nem lembram mais a conta, mas eu sempre conto. Sendo um hábito meu realizado no automático, fora que também era o meu trabalho. Dar as bebidas sabendo que iriam ser pagas antes que a inconsciência chegasse em suas mentes.
E não é como se tivesse apenas os solitários de plantão. Isso ocorria mais em meu campo de visão. Porque logo em frente tinha dez mesas, onde os grupos maiores sempre chegavam e se sentavam, para guardar, reservar os lugares para os que ainda iriam chegar. Animados, cheios de energia, com o único pensamento em se divertir. Com as músicas aleatórias tocando ao fundo, que o Theodoro e o Chefe trocavam de acordo com os pedidos e quando estavam afim, principalmente quando eles estavam afim.
Todo mundo sabia que ali os únicos que decidiam as músicas eram o Theodoro e o Chefe. Com algumas bajulações ali, um pouquinho de dinheiro oferecido, conseguiam trocar as melodias de sempre, de modo muito "mais eficiente".
Eu não servia e nem saia da bancada, ordens da Chefia, que não queria ficar preocupado ou ter que ficar atento a ter que proteger a "minha honra" o tempo todo, de homens mal intencionados. Atitudes paternais que surgiam, mas nunca permaneciam por muito tempo.
Ele era o meu progenitor, ou como a sociedade diz, ele era o meu pai. Sem nenhum traço de carinho e amor, desde o início ele estabeleceu essa distância entre nós dois. Dizendo só o que fosse necessário, importante ou trivial para passar o tempo. Era algo bom, e até mesmo confortável. Me habituei a sua rotina, ao seu jeito, a sua vida, como se também fosse minha.
Eu não tinha mais nada. E o que eu tinha, estava bem abaixo de dois palmos do chão. O seu amor sereno, cuidado e afeto que eu não conseguia me lembrar mais como eram perfeitamente. O seu rosto sendo perdido lentamente em minhas lembranças, pouco a pouco fica mais difícil lembrar de sua fisionomia, de você Mamãe. A única coisa intacta sendo o seu abraço, bom e acolhedor que sempre me acalmava.
Por isso não consigo deixar o Chefia, ele é a única pessoa que eu tenho nessa vida. Me fazendo uma oferta tentadora assim que terminei o Ensino Médio, de pagar qualquer curso que quisesse na faculdade, contanto que eu não trabalhasse mais ali com ele nas madrugadas a fio, ou qualquer horário que fosse. Meu foco seria apenas no estudo e nada mais. E quando eu recusei, ele nunca mais me ofereceu essa oferta.
Não o julgo por isso, eu também não faria essa oferta novamente e insistentemente.
Ele não sabia, mas eu tinha dinheiro o suficiente para custear a taxa de uma graduação e sua duração tranquilamente. Porque ele não sabia, que todas as vezes que depositava a quantia mensal para a minha mãe, desde o momento em que descobriu a sua gravidez. Ela não tocava em um centavo se quer. Guardando tudo, e depois depositando tudo numa conta poupança para mim. Que ele acha até hoje, que foi do bolso dela que ela tirou e colocou ali.
Ela queria apenas o amor dele, e isso ele não poderia e não queria dar, simplesmente porque ele não sentia tal coisa por ela.
Eu sabia da sua existência, como ele era, onde estava. Mas nunca fomos apresentados como pai e filha corretamente, apenas um abraço apertado assim que ele me encontrou no hospital, sabendo que mamãe tinha falecido, um acidente na estrada, tão comum, mas foi justamente e logo com ela.
No meio desse abraço ele disse que sentia muito por eu ter perdido ela, que ele poderia não amá-la, mas sabia perfeitamente que ela sim, me amava e muito. Não cheguei a perguntar como ele poderia ter tanta certeza disso, não importava a resposta, porque só de saber do seu amor me bastava naquele momento.
Com 10 anos de idade, poucas palavras bastam para preencher um coração dolorido, com possibilidades irreais, mas que fazem bem. E agora com 9 anos tendo se passado, toda vez que me lembro em saber que ela me amava e muito, consigo me sentir feliz e satisfeita.
Saímos os dois lado a lado daquele hospital para a sua casa, que seria a minha casa até hoje. Ele nunca chegou a decorar o meu quarto, e eu nunca cogitei pedir tal coisa. A Tia dele assim que soube da minha chegada, começou a morar conosco para cuidar de mim, talvez por não confiar nos ensinamentos corretos que ele poderia dar a uma criança de 10 anos, simplesmente por não saber lidar com crianças, ou porque na verdade, ela nunca teve filhos, e se quer foi casada. Sempre penso e reforço essa possibilidade, mas em voz alta digo a primeira opção, porque hoje em dia ela não está mais aqui conosco, também morreu, como, eu não sei. O Chefia se esquiva e diz que os detalhes não importam, e sim, só os fatos, que ela tinha morrido e estava morta.
Preciso parar de pensar nisso, sempre é a mesma coisa. A noite chega, as pessoas começam a entrar no bar, e eu começo a lembrar das mesmas coisas: tudo que envolvia o Chefia, minha tia e o abraço caloroso da minha mãe.
Perdida em pensamentos, um deslumbre de aproximação à bancada, me trazia de volta para onde eu realmente estava, focando a minha atenção ao primeiro cliente da noite que se sentava na bancada.
Ao olhar para ele, senti algo estranho. É como se os seus olhos estivessem sorrindo e me convidando para entrar. E por incrível que pareça, os meus olhos estavam retribuindo para ele que eu iria entrar com toda a certeza.
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Através do seu olhar
RomanceEra como se todas as vezes que os seus olhos eram direcionados para mim, quisessem dizer inúmeras palavras, que formassem belas frases que expressassem o que você realmente sente por mim. Como se o seu sorriso, e as covinhas que apareciam junto com...