Sob a carne, eu sinto o estalar dos ossos da minha face se quebrando.
Mais um soco.
Um sino ressoou dentro da minha mente. Eu virei a cabeça e o próximo acertou o meu ouvido, dando aquela velha sensação de estar subindo a serra.
Outra pancada.
Minha visão escureceu.
Não enxerguei mais nada.
Ainda estava consciente?
"Sim".
Meu cérebro respondeu por mim. Minhas pálpebras estavam tão inchadas que já não conseguia abri-las. Eu respirei profundamente e um líquido metálico e viscoso desceu pela minha garganta.
Sangue. O meu sangue.
Talvez dos dentes quebrados ou da língua cortada, ou quem sabe da bochecha rasgada por dentro. Já não sabia mais. Já não sabia onde doía ou o que estava quebrado e fora de lugar. Tirei forças de onde não tinha, consegui virar de bruços. O líquido frio se derramou sobre o meu couro cabeludo e pelas minhas costas. O cheiro forte de gasolina me inebriou.
Ele acendeu um fósforo e eu senti quando o pequeno palito caiu na pele nua das minhas costas. Eu não podia ver o fogo tomando conta do meu corpo, mas a fumaça me sufocava. Eu soube que o fim estava próximo. Gritei, chorei e me debati por reflexo. Eu queria morrer, mas o meu corpo queria viver.
Rolei pelo chão de concreto e senti a pele se desfazendo, descolando em pedaços, em cinzas sobre a gordura, que foi se descolava do músculo e derretia como a cera de uma vela. Meus pulmões cozinharam dentro de mim. Eu não escutava o estalar das chamas sobre a minha carne. Eu só conseguia ouvir o meu coração batendo cada vez mais rápido.
Rápido como um cavalo de corrida.
Eu acordei ofegante.
Estava sufocando. Me sentia paralisada.
Ah!
A sensação de alívio e desespero vieram em simultâneo.
Os meus olhos estavam secos, mas mesmo assim eu passei os dedos trêmulos, para afastar as lágrimas que estariam lá se tivesse sobrado alguma. Eu já havia chorado todas as lágrimas que eu tinha. Me levantei da cama o mais silenciosamente possível, e fui até o banheiro. Acendi a luz e vi.
Com dificuldade, vislumbrei o meu reflexo no espelho. Os dois olhos roxos. Uma pálpebra tão inchada que eu não conseguia abrir. O lábio superior ainda inchado, com um corte por dentro que deveria ter levado pontos. A pele coberta pelo suor, brilhando na luz amarelada. Minha camisola estava encharcada.
"Eu só queria um banho..., mas é melhor não o acordar".
Meu relógio de pulso marcava 02h38min da manhã. Eu fiquei em pé na frente do espelho, indecisa.
"Se eu ligar o chuveiro, ele pode acordar e..."
O arrepio percorreu a minha pele, apenas com a ideia, já senti meu estômago congelar.
Mas se eu me deitar suada ele pode acordar dizendo que eu sou uma porca suja, imunda, que não gosta de banho.
— Tá fazendo o que acordada?! ─ Ele acordou!
Eu pulei assustada. Me encolhi enquanto sentia os meus batimentos acelerarem.─ Assustou por quê? O que você estava fazendo?! ─ Perguntou ele aumentando o tom de voz.
Eu me encolhi mais um pouco antes de responder.
─ E-eu só queria tomar um banho... Tá muito quente. Eu t-tô suada.
— Hm! Sei...! ─ Ele entrou no banheiro, ficou de pé em frente ao sanitário e abaixou a cueca para urinar.
─ E então? Você vai tomar banho ou vai ficar aí parada a noite toda sua porca?! Tá com medo da água?! ─ Perguntou com ironia, sem olhar para mim. — Vai logo, porra. Mano, não me tira do sério agora, não! Eu quero dormir, não tô com saco pra aturar essa tua leseira mental, nunca vi, uma pessoa lesada até pra uma coisa simples como um banho.
Tirei a camisola de algodão rosa bebê, deixei no cesto de roupas sujas e liguei o chuveiro. O efeito calmante da água morna na minha pele fria e cheia de manchas roxas, durou pouco.
— E vem logo pra cama, eu tenho que dormir! ─ Gritou ele, saindo do banheiro.
Eu deixei o sabonete cair três vezes enquanto me lavava com as mãos tremendo. Me enxaguei e sai do chuveiro antes que ele me chamasse novamente. Peguei outra camisola da primeira gaveta e me deitei antes que ele tivesse tempo de reclamar.
Ele passou o braço por cima das minhas costelas e eu senti a dor do osso, talvez trincado, talvez quebrado, eu nunca saberia, porque ele não me deixaria ir a uma consulta médica, muito menos ao hospital. Me puxando contra o peito, ignorando a minha dor, ele me agarrou para me proteger. Era o que ele dizia, mas eu sabia a verdade.
Hoje eu sei.
"Infelizmente foi só um sonho."
Lembrei do motivo para eu ter acordado. Toda noite eu pensava que seria a última, e que ele finalmente me presentearia com o doce alívio da morte, mas eu
sempre abria os olhos e percebia, que o pesadelo ainda continuava.Apenas dois sonhos espreitavam por trás das minhas pálpebras. Apenas nesse, todas as noites ele me matava de uma maneira diferente.
Eu fechei os olhos e tentei voltar a dormir. As lágrimas deveriam correr pelas pálpebras fechadas, eu respirava pela boca, para o meu choro seco não ser ouvido.
Eu só queria poder gritar. Gritar pela dor que me rasgava por dentro. Eu não aguentava mais.
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O Caos que Você me Deixou
RomansaO que acontece quando o amor se torna um pesadelo? Será que as pequenas coisas fazem diferença no amor? O que acontece quando você fecha os olhos para pequenas atitudes tóxicas? Quando o cuidado e o ciúmes passam dos limites? Lucia conheceu Migue...