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Ninguém apareceu no meio da noite, nem no dia seguinte, nem no seguinte. Isso não convenceu Carline, tampouco Deirdre. O estado de atenção permaneceria por tempo indeterminado. As duas continuaram com a rotina de sobrevivência, acrescida de algumas preocupações: reforçaram as armadilhas e se mantiveram perto da cabana na hora de caçar. Trilhas distantes só em caso de emergência.

Deirdre mal dormiu, às vezes duas ou três horas por noite no máximo. Despertava de madrugada e dava uma volta na cabana. Perto do amanhecer, iniciava uma série de exercícios; uma rotina que existia desde antes de a pandemia estourar e intensificou depois dela. Às vezes, quando Carline acordava, já encontrava a amiga encharcada de suor e com os músculos doloridos.

— Preciso de algumas ervas — comentou Carline certa manhã, enquanto cuidava do jardim.

— Quais?

Carline levou o polegar e o indicador à boca e sugou o ar.

— Essa erva tá difícil de encontrar. Peça algo mais fácil.

O machado de Deirdre desceu com força, partindo uma tora de madeira no meio. Uma pilha pequena descansava no canto. O fogo não podia ser forte, fosse para cozinhar ou esquentar a cabana nos dias frios, para não chamar atenção.

— Que pena. Artemisia frigida. Pode nos salvar de algumas dores. Você principalmente, com as cólicas.

— Certo.

Deirdre tirou as luvas de proteção e puxou o machado cravado na madeira de base. O sol estava quase sobre a cabeça das duas e o suor empapava a nuca.

— Não, nada disso. — Carline se levantou. — Eu vou.

— Então eu vou junto.

— Tá achando que eu sou criança, mamãe? Fique aqui e corte esse cabelo, como vem falando que vai fazer há uma semana.

Cabelos longos não faziam mais parte da realidade de Deirdre desde os 17. Por pura necessidade, passara a tesoura nos fios castanhos. Sem os produtos caros que comprava com o dinheiro da mesada, eles viraram palha. Tinha pena do "eu" adolescente ao se lembrar do tanto que chorou ao ter os cabelos cortados no estilo pixie pelos oficiais da FEDRA. Com 36 anos, amava a praticidade do corte.

— Por que você não corta o seu cabelo? — resmungou Deirdre.

— Já cortei.

Mais uma vez, Carline usou dos gestos para imitar uma tesoura com os dedos, fingindo cortar os pelos da virilha.

— Você é nojenta. — Deirdre arremessou as luvas na mulher. — Seja rápida.

— Sempre retorne — respondeu Carline.

Deirdre aproveitou para verificar mais umas duas vezes as armadilhas próximas à cabana. Não sabia desligar a sensação de perigo iminente, o que a salvara de muitos problemas. Por outro lado, tornou impossível de relaxar.

Tomou um banho rápido de balde, sempre com o machado ao alcance da mão. Vestiu-se mais rápido ainda e tirou o excesso d'água dos cabelos. Em frente ao espelho rachado, cortou os fios sem prestar atenção ao reflexo do rosto. Fazia um trabalho decente na maioria das vezes. Carline tiraria as pontas depois.

Quando terminou, apoiou as mãos na pia e respirou fundo. Não queria ficar na cabana em um dia como aquele. Tudo tão silencioso e vazio. Deirdre caminhou pelos corredores feito um fantasma carregando correntes invisíveis. Há mais de um ano que não fazia parte de uma comunidade e ainda achava estranho viver em recolhimento. Por outro lado, estava certa de que não saberia conviver com outros seres humanos além da amiga.

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⏰ Última atualização: May 30 ⏰

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